quarta-feira, 29 de junho de 2011
domingo, 19 de junho de 2011
O Fórum sobre Identidade Nacional, realizado no Huambo, aos 23/10/2003, fez a propósito dos nomes a seguinte conclusão-recomendação:
Seja constituído um Grupo Técnico de Trabalho formado por especialistas angolanos, representantes de várias comunidades sócio-culturais, que se debrucem sobre o estudo das formas de atribuição de nomes nessas mesmas comunidades, para que cada indivíduo veja no nome atribuído um factor ou aspecto da própria identidade. O resultado do estudo levar-se-ia à Assembleia Nacional para aprovação como lei. trazemos o estudo sobre alguns dos nomes das crianças que frequentam o Centro Educativo “A Semente do Futuro”. Achamos que é uma grande riqueza e sobretudo mostra que na cultura umbundu de Angola a legislação sobre os nomes e apelidos podia ser diferente por causa do seu significado cultural e simbólico.
A metodologia usada no trabalho é a seguinte: depois do nome, vem, entre chavetas, o provérbio em que se enquadra a explicação, e no fim a respectiva lição moral. Para alguns nomes vem apenas a explicação.
Nota: o Blog Ombembwa Angola tenta dar o seu contributo traduzindo ou completando o sentido, o qual aparece a azul.
1. EYALA [eyala lyambata tchalwa] – A lixeira ‘recolhe’ e suporta tudo.
2. HENDA [enda lakulu okakuka, enda l’omãla okateñgela – quem anda com adultos chega a velho, quem anda com crianças chega a coxo] - O segredo está em que o mais velho conhece o que mete medo – tchikola – e “não toca”. Quem tem medo obedece e não pratica o mal!
3. KALEI – É o nome dado ao responsável das chaves na casa real.
4. KALUNDUNGU [vokulula kwolondungu hamo kwatcho. Vilula, polê p’otchimanda vipwapo – o gosto do gindungo está no seu picar; é picante, mas devora-se a gamela] – A pessoa é boa para uns, para outros passa por má.
5. KAMWENHO [ndilya k’omwenho kaindanda kumwe; kupañgela wavisya – gozar por excesso a vida tem pernas curtas, a gula leva a frustrações] – Coma parte da tua riqueza e guarde outra, porque não se sabe o dia de amanhã.
6. KAPIÑGALA – [kapiñgala kalisiki la mwenle– substituto é inferior ao dono] É o herdeiro de tudo o que é dos mais velhos, desde o feitiço até aos bens. Tal como o sobrinho, filho da irmã, é herdeiro de tudo o que é do tio, assim o filho.
7. KASINDA – É o nome dado àquele nascido a seguir aos gémeos.
8. KATCHISAPA [kakuli lu katyapulamo upindi – num ramo disperso, não há quem não tropece] – È um ramo ao longo do caminho que batendo a todos pode ser sinal de união.
9. KATITO [Katito oko kove, tchinene tchamãle. ] – Fique sempre feliz com o que tens, antes que te chamem de invejoso.
10. KATULO [lyanga otulo, hukalyange ovisokasoka] – Durma antes e pense depois, porque, de contrário, o sono não vem.
11. KAVINyAMA [ovilongwa havyangeko kavinyama] – Não me acusem do que não fiz. Se estás sem culpa, tranquiliza-te;
12. KAYENGENGA [kayengenga walunga] – Sê flexível, porque o rijo acaba por partir.
13. LIKILIKI ou Lililili [likiliki wandele la põlo] – Toda a agitação é passageira.
14. LUKAMBA [lukamba l’ohele kakwete] – Não teme nada, pode ir procurar esposa mesmo fora da sua família. São coisas que na tradição africana não se fazem! Mas ele é o soldado do rei que procura e conserva os anseios do chefe, quer em tempo de guerra, quer em tempo de paz e não se importa em que condições forem.
15. MOMA [apa walila omoma hapoko yukumomela – não é no local em que se come a jibóia que as outras nos atacam] – O mal não vem todo no mesmo dia
16. NDANDULA [kwenda ombela owiñgi uvandjako; kwenda ondambi, umosi lika ovandjako. Ndandulako] – Para onde foi a chuva todos olham, para onde foi uma bela mulher só o marido acompanha.
17. NDJAMBA [yakutulika, eteke yukutulula, k’ilu kwalinga otchipãla– o elefante que te eleva um dia te traz abaixo, o céu fica longe] – Quando se tem alguém num lugar de chefia, está-se seguro, mas tudo pode acabar de repente! – “
18. NGEVE [ngeve yusi kwatala] – Quando o hipopótamo passa o dia estendido, está para morrer!
19. NHIMAWA [onyima yiwa kayimoli omõla – costas aconchegantes não conseguem ter bebés] – Quem quer não tem! Quem tem esbanja! Quem pode não faz;
20. SAFEKA - É nativo: nunca mudou.
21. SANDULA – Esbanjador. – “Pessela” – [wapessela kanonla – wanyelisa kasandiliya] – há perdas sem substituição!
22. SIMBU (=TCHOKOSIMBU) [tchosimbu, okwiya tchalinga tchokaliye] – Se alguém te deve, não te zangues com ele; quando vier pagar, ficará tudo novo.
23. SIMWILA [hukandjupe tchange, ñgasi (ale) likalyange–] – Uma viúva que cuida dos filhos sòzinha, não lhe peças mais emprestado (sobretudo sem lhe pagar).
24. SUKWAPANGA (=Suku AKWETCHE) [Suku akwetche, otcho ovimbanda vilipande – Já que Deus não te quer curar, então que se retire para os kimbandas mostrarem o seu melhor]. São nomes atribuídos a crianças nascidas de mães que perdem (muitos) filhos por doença. Como acontece na maioria de nomes “infelizes”, acredita-se que a morte nos retira pessoas queridas. Logo, se o nome revela certo desprezo, ela se desinteressa.
25. TCHAKUSOLA [tchakusola kwama k’omunga] – Mesmo que caiamos no goto, há que esperar pelo convite.
26. THIKOLA [tchikola hukatchikwate] – se é sagrado, não deves tocar.
27. TCHIKOMO [tchatchotcho tchika ukusumba!] – Admiração por medo ou insólito!
28. TCHILOMBO [p’otchilombo tch’olongende, kayolokele osalapo] – na casa de hóspedes, o lento é o último a sair.
29. TCHINOFILA [umba te watchilya] – A causa pela qual se morre tem de ser do nosso inteiro conhecimento e/ou pleno consentimento – a morte é vista como castigo por algum mal, ou seja, não te matará o que não comeste/estragaste.
30. TCHINONHALE [tchina onyanle katchukutundi; tchinosole katchukusole] – o que não gostamos persegue-nos, o que almejamos está sempre distante!
31. TCHIPUMA [tchipuma etemo tchiyunda, tchipopya omanu tchikeya] – O que se capina com a enxada torna a crescer; o que as pessoas dizem há-de acontecer!
32. TCHISINGI [tchisingi kakulihile omõla wombwale; omõla wa soma, osuke ale owasi, vosi valipundukamo] – O tronco (no caminho) não conhece pessoa boa e delicada; não conhece o filho do rei, rico ou pobre; todos tropeçam nele.
33. TCHITENDE [tchitende opanga etchi tchinvi ndañgo watanga omo watopa. Walunguka kapangi etchi tchivi] – Uma pessoa parva – minus habens – faz coisas descabidas, mesmo que tenha estudado; a pessoa dotada não faz coisas sem sentido.
34. TCHITULA – É alguém que nasceu numa aldeia nova.
35. TCHITUMBA [tchukwihã so la nhoho, wamale kakutchihã, hati okwete ale] – o que te dá o pai ou a mãe, pessoa alheia não te daria, diria que tens já o suficiente
36. TCHIVINDA [okutela utale l’uteke, volundila utale – quem martela metal à noite, será acusado do metal sumido] – Ao guarda se responsabiliza tudo o que falta.
37. TCHIYO [nda wamõla kahañgu, katchiyo hukawinesi; kahañgu nda kepo, katchiyo kove iya okupopela – quando achares uma panela em melhores condições, não jogues fora a frigideira de barro, salvar-te-á algum dia] – Mais vale ser fiel ao que já nos pertence, porque da novidade nos poderemos arrepender tarde demais.
38. VIHEMBA - È um nome dado a quem durante a gravidez e o parto provocou muitos problemas de saúde; foram precisos muitos medicamentos para a mãe ou mesmo o pai.
39. VISSOKA [ovisoka-soka vyovutima] – O coração pensa em tudo e às vezes sem razão!
Por André Lukamba, em colaboração com O mais velho MOISÉS MUNDA
Disponível em http://huambodigital.com/os-nomes-em-umbundu-ii/
segunda-feira, 13 de junho de 2011
a partir de recolhas efectuadas entre os séculos XIX e XX.
in Revista de Bordo AUSTRAL (TAAG - Linhas Aéreas de Angola), Nº 45, Jul/Ago/Set 2003.
Autorização para reprodução do texto concedida por AUSTRAL em 11 de Fevereiro de 2004.
A literatura angolana sob a forma escrita sedimenta-se apenas no século XIX. Porém, a criação verbal oral é bem mais antiga. Remonta aos primórdios da própria comunicação humana. Por isso, qualquer definição de literatura angolana hoje, não pode perder de vista aquele segmento a que se chama oratura ou literatura oral. Trata-se de um acervo de textos orais que podem, presentemente, ser conservador com recurso à escrita.
Conscientes do seu valor andavam alguns autores do séc. XIX. Não faz sentido ignorar tais aspectos, na medida em que eles traduzem muito mais do que isso. Revelam a coexistência de três tradições em que a literatura angolana se desenvolve. A mais antiga, a literatura oral ou oratura, é aquela que nos remete para os tempos imemoriais.
Quando, nos anos 60, o linguísta ugandês Pio Zirimu forjou o termo oratura, decorria nas universidades de Makerere no Uganda, Nairobi no Quénia e Das-es-Salaam na Tanzânia, um debate sobre a hegemonia das línguas europeias. Mais de quarenta anos passados, são muitos os defensores da ideia segundo a qual a oratura não é apenas uma vertente das literaturas modernas em África. Encerra em si as conotações de um sistema estético, um método e uma filosofia. (1)
Mas, se tivéssemos que acompanhar os debates que se desencadearam em Angola sobre o uso das línguas locais e das suas literaturas orais, iríamos encontrá-los nos jornais publicados em Luanda no século XIX. Tal era o vigor das reflexões que autores como Joaquim Dias Cordeiro da Matta e o suíço Héli Chatelain deixaram para a história valiosas recolhas.
No entanto, a atitude assumida por Cordeiro da Matta não pode ser comparada com a de Héli Chatelain, na medida em que, no plano do conhecimento, o primeiro desenvolve uma análise a partir de uma visão endógena. O segundo é movido por um interesse fundamentalmente etnográfico e exógeno, além de ter pretendido, segundo Geraldo Bessa Víctor, “pavonear-se com o primeiro lugar, na ordem cronológica, à frente de autores de florilégios de provérbios angolenses, prémio a que em verdade não tinha jus.” (2)
Em todos os trabalhos de pesquisa realizados sobre a literatura oral angolana nos séculos XIX e XX, os provérbios ocuparam sempre um lugar de destaque. Merecem referências as seguintes obras: Elementos Gramaticais da língua Nbundu (1864), de Saturnino de Sousa e Oliveira/Manuel Alves de Castro Francina; Kinbundu Grammar – Gramática Elementar do Kimbundu ou Língua de Angola (1888-1889), de Héli Chatelain; Philosophia Popular em Provérbios Angolenses, Jisabu, Jiheng’ele, Ifika ni Jinongonongo Josoneke mu Kimbundu ni Putu Kua mon’Angola (1891), de Cordeiro da Matta; A Collection of Umbundu Proverbs, Adages and Conundrums (1914), da West Central African Mission – A.B.C.F.M.; Missosso, volume I (1961), de Óscar Ribas; Selecção de Provérbios e Adivinhas em Umbundu (1964), do Padre José Francisco Valente; Sabedoria Cabinda – Símbolos e Provérbios (1968), do Padre Joaquim Martins; Filosofia Tradicional dos Cabindas (1969-1970), do Padre José Martins Vaz; Dizer Assim (versões em português de provérbios da língua Umbundu, 1986), de Costa Andrade; Ingana Ye Mvovo Mya Bakongo (provérbios e máximas dos Bakongo, 1998), de Miguel Barroso Kyala.
No contexto plurilinguístico angolano, o provérbio tem diferentes designações. Diz-se Olusapo na língua Umbundu; Omuhe ou Omuse em Niyaneka-humbi; Ingana em Kikongo; Jisabu em Kimbundu; Ikuma ou Cikuma em Cokwe. (3)
Dentro da classificação de textos literários orais, o provérbio representa o tipo de textos que, apesar da sua autonomia, pode no entanto entrar na construção de outros textos. Constituindo uma categoria de um conjunto que inclui ditados e máximas, caracteriza-se pela brevidade, associando-se-lhe uma estética da transmissão de pensamentos, crenças, ideias, valores e sentimentos. No que à sua estrutura diz respeito, o provérbio é um texto sintético e de uma grande densidade semântica.
Um provérbio carrega sempre dois sentidos – literal e conotativo – implicando um significado secundário. A passagem do primeiro ao significado secundário, cuja coerência é possível detectar em determinadas circunstâncias, constitui o núcleo da sua beleza, justificando por isso o esforço de interpretação que ele exige.
A estrutura dos provérbios normalmente é bipartida, apresentando premissas em dois membros ou orações da frase, numa configuração aparentemente silogística.
Além do sentido literal e do sentido conotativo, há que referir o tema, isto é, a lição a reter, a síntese subjacente ao significado das palavras e de que se parte para a extracção da ideia, do valor, do pensamento, enfim o ensinamento moral ou filosófico. Ao incidirmos sobre o tema, estamos a dar destaque à natureza pedagógica dos provérbios, porque deste modo a eles se recorre para exprimir algo que diga respeito aos diferentes aspectos da vida.
O jurista angolano Moisés Mbambi, enquanto falante da língua umbundu, seleccionou um conjunto de provérbios contendo princípios jurídicos fundamentais do direito, expondo a sua interpretação no contexto do pensamento jurídico de origem ocidental, mais especificamente dos diversos ramos de direito. (4)
Conscientes do seu valor andavam alguns autores do séc. XIX. Não faz sentido ignorar tais aspectos, na medida em que eles traduzem muito mais do que isso. Revelam a coexistência de três tradições em que a literatura angolana se desenvolve. A mais antiga, a literatura oral ou oratura, é aquela que nos remete para os tempos imemoriais.
Quando, nos anos 60, o linguísta ugandês Pio Zirimu forjou o termo oratura, decorria nas universidades de Makerere no Uganda, Nairobi no Quénia e Das-es-Salaam na Tanzânia, um debate sobre a hegemonia das línguas europeias. Mais de quarenta anos passados, são muitos os defensores da ideia segundo a qual a oratura não é apenas uma vertente das literaturas modernas em África. Encerra em si as conotações de um sistema estético, um método e uma filosofia. (1)
Mas, se tivéssemos que acompanhar os debates que se desencadearam em Angola sobre o uso das línguas locais e das suas literaturas orais, iríamos encontrá-los nos jornais publicados em Luanda no século XIX. Tal era o vigor das reflexões que autores como Joaquim Dias Cordeiro da Matta e o suíço Héli Chatelain deixaram para a história valiosas recolhas.
No entanto, a atitude assumida por Cordeiro da Matta não pode ser comparada com a de Héli Chatelain, na medida em que, no plano do conhecimento, o primeiro desenvolve uma análise a partir de uma visão endógena. O segundo é movido por um interesse fundamentalmente etnográfico e exógeno, além de ter pretendido, segundo Geraldo Bessa Víctor, “pavonear-se com o primeiro lugar, na ordem cronológica, à frente de autores de florilégios de provérbios angolenses, prémio a que em verdade não tinha jus.” (2)
Em todos os trabalhos de pesquisa realizados sobre a literatura oral angolana nos séculos XIX e XX, os provérbios ocuparam sempre um lugar de destaque. Merecem referências as seguintes obras: Elementos Gramaticais da língua Nbundu (1864), de Saturnino de Sousa e Oliveira/Manuel Alves de Castro Francina; Kinbundu Grammar – Gramática Elementar do Kimbundu ou Língua de Angola (1888-1889), de Héli Chatelain; Philosophia Popular em Provérbios Angolenses, Jisabu, Jiheng’ele, Ifika ni Jinongonongo Josoneke mu Kimbundu ni Putu Kua mon’Angola (1891), de Cordeiro da Matta; A Collection of Umbundu Proverbs, Adages and Conundrums (1914), da West Central African Mission – A.B.C.F.M.; Missosso, volume I (1961), de Óscar Ribas; Selecção de Provérbios e Adivinhas em Umbundu (1964), do Padre José Francisco Valente; Sabedoria Cabinda – Símbolos e Provérbios (1968), do Padre Joaquim Martins; Filosofia Tradicional dos Cabindas (1969-1970), do Padre José Martins Vaz; Dizer Assim (versões em português de provérbios da língua Umbundu, 1986), de Costa Andrade; Ingana Ye Mvovo Mya Bakongo (provérbios e máximas dos Bakongo, 1998), de Miguel Barroso Kyala.
No contexto plurilinguístico angolano, o provérbio tem diferentes designações. Diz-se Olusapo na língua Umbundu; Omuhe ou Omuse em Niyaneka-humbi; Ingana em Kikongo; Jisabu em Kimbundu; Ikuma ou Cikuma em Cokwe. (3)
Dentro da classificação de textos literários orais, o provérbio representa o tipo de textos que, apesar da sua autonomia, pode no entanto entrar na construção de outros textos. Constituindo uma categoria de um conjunto que inclui ditados e máximas, caracteriza-se pela brevidade, associando-se-lhe uma estética da transmissão de pensamentos, crenças, ideias, valores e sentimentos. No que à sua estrutura diz respeito, o provérbio é um texto sintético e de uma grande densidade semântica.
Um provérbio carrega sempre dois sentidos – literal e conotativo – implicando um significado secundário. A passagem do primeiro ao significado secundário, cuja coerência é possível detectar em determinadas circunstâncias, constitui o núcleo da sua beleza, justificando por isso o esforço de interpretação que ele exige.
A estrutura dos provérbios normalmente é bipartida, apresentando premissas em dois membros ou orações da frase, numa configuração aparentemente silogística.
Além do sentido literal e do sentido conotativo, há que referir o tema, isto é, a lição a reter, a síntese subjacente ao significado das palavras e de que se parte para a extracção da ideia, do valor, do pensamento, enfim o ensinamento moral ou filosófico. Ao incidirmos sobre o tema, estamos a dar destaque à natureza pedagógica dos provérbios, porque deste modo a eles se recorre para exprimir algo que diga respeito aos diferentes aspectos da vida.
O jurista angolano Moisés Mbambi, enquanto falante da língua umbundu, seleccionou um conjunto de provérbios contendo princípios jurídicos fundamentais do direito, expondo a sua interpretação no contexto do pensamento jurídico de origem ocidental, mais especificamente dos diversos ramos de direito. (4)
Com o elenco que se segue, exemplifico o exercício de interpretação dos provérbios (5) veículados em Umbundu, uma das línguas Bantu faladas em Angola.
- Ekepa kalilinasi l’ositu, omunu kavokendi lomwenho (o osso não é deitado fora com a carne, a pessoa não é sepultada com vida). O osso está para a carne assim como a pessoa está para a vida. Este provérbio pode ser proferido quando se pretende ensinar ou elucidar alguém sobre a importância da relação existente entre a pessoa, as partes do seu corpo e a própria vida. A relação existencial que se observa nas duas orações do provérbio, permitem inferir a construção de uma metonímia, pois o valor da carne e da pessoa humana é aferido por uma das suas partes. É que não há carne sem osso, mas também não há vida humana sem pessoa. - Ekova k’omanu, ochipa k’inhama (a pele humana caracteriza as pessoas, a pele dos animais tem um nome diferente). Não se deve confundir a pessoa com os animais. Apesar da pessoa e os animais possuírem pele, há na sua aparência uma diferença essencial e profunda. O que permite distingui-los. Por isso, tendo em atenção a dignidade humana, não se pode maltratar as pessoas como se fossem animais. Se quiser ser tratado como pessoa, deve cuidar mais da higiene, para não se assemelhar a um animal. A metonímia observa-se aqui igualmente. A aparente semelhança das partes não pode ser critério para avaliar o todo de duas realidades distintas. - Ekova liyetimba, olondunge k’utima (a pele cobre o corpo humano, o juízo – ou a responsabilidade moral – cobre o coração humano). Do mesmo modo que o corpo revela o aspecto físico exterior, assim o grau de responsabilidade e integridade moral determinam o carácter da pessoa. O aspecto físico exterior não traduz o valor e responsabilidade morais de uma pessoa. Os homens não se medem pela estatura física. Antes pelo contrário, valem pela sua dimensão espiritual e interior. - Onjimbo l’elungi, omunu l’onjo (o papa-formigas vive na cova, a pessoa habita uma casa). Um animal como o papa-formigas vive em qualquer cova que encontrar, já a pessoa tem sempre uma casa. Enquanto as covas abundam na selva, os homens constróem as casas de acordo com as suas necessidades. Os animais não transformam a natureza como os homens. A dignidade da pessoa não se confunde com o modo de vida dos animais. - K’ono kwatota, omanu valuka (secou a nascente do rio, as pesoas mudam de lugar). Há uma relação de causa e efeito entre a existência de um rio e a constituição de aglomerados populacionais nas suas proximidades. A água é indispensável para a sedentarização dos homens e quando a fonte seca, parte-se à procura de outro lugar. - Longa ochinhama, kukase omunu (alveja-se o animal, não se apedreja a pessoa). O animal pode ser alvo de caça, mas a vida humana é sagrada e deve merecer respeito. A pessoa nem sequer deve ser apedrejada. - Omunu nda ñgo wafa kami ondalu, ava vasyala vayota (a pessoa que morre não extingue o fogo, os vivos continuam a servir-se dele – o fogo). Apesar da morte, que é uma contingência que afecta os homens, a vida prossegue com os vivos. A substituição e a sucessão são incontornáveis no mundo das relações sociais. A morte não põe termo à sobrevivência comunitária. Não há pessoas insubstituíveis. |
(1) Ver Ngugi wa Thiong'o, Penpoints, Gunpoints and Drums. Towards a critical theory of the arts and the state in Africa, Oxford, Claredon Press, 1998, pp. 103-128.
(2) Geraldo Bessa Víctor, Ensaio crítico sobre a primeira colecção de provérbios angolenses, Lisboa, 1975, p.23.
(3) Ver António Fonseca, Contribuição ao estudo da literatura oral Angolana, Luanda, INALD, 1996, p. 52.
(4) Moisés Mbambi, O Direito Proverbial entre os Ovimbundu, Comunicação apresentada ao Colóquio do FENACULT, 1989.
(5) Ver José Francisco Valente, Selecção de Provérbios e Adivinhas em Umbundu, Instituto de Investigação de Angola, 1964.
Disponível em http://www.angola-saiago.net/prov.html
quinta-feira, 9 de junho de 2011
Diz o senso comum que cantar é, assim como chorar e rir, manifestação universal. Isola-se no entanto o «dançar», já que, apesar de inesgotável campo de estudos, quase sempre depende do estímulo da canção/música/ritmo, digo eu. Daí ter eleito apenas a canção pelo ângulo da sociocultura Ovimbundu.
Recorrerei a memórias de uma infância na comuna do Monte-Belo, município do Bocoio, que abandonei aos sete anos devido à guerra civil. Permitam-me vestir de aura positiva a máxima que diz que “se pode tirar a pessoa do mato, e não o mato da pessoa”, na medida em que o conceito “mato” representa, no falar das nossas gentes, o meio rural e toda a sua mística – não necessariamente a selvajaria.
No “mato” ou kimbo, cantava-se em vários contextos. No político, ecos de resistência pró governo (partido único) e exército contra o inimigo (guerrilha da Unita) e apoiantes internacionais; no social, destaco a pedra onde mulheres transformam milho em fuba, ajustando golpes com “upi” (piso) ao compasso de canções, quantas vezes a satirizar ou a condenar hábitos e acções (do indivíduo ao colectivo) com base no sistema de valores do meio; mas é na oralidade (batucadas, serão no ojango ou à volta da fogueira) que reside o motivo desta divagação (seria exercício inútil definir oralidade).
Os contos só podiam ser partilhados de noite, nunca à luz do dia. Cresceriam chifres na cabeça de quem desobedecesse o mito (seria para desencorajar a mangonha?). Alguns deles, hoje, eu os assemelharia a filmes de terror. Houve também românticos. Não raras vezes, pedíamos que nos repetissem essa ou aquela estória durante anos. Não vinham a seco, carregavam sempre uma canção ou mais que isso – já não sei se não era a canção que as carregava.
O verso não é preocupação. Alguns nomes da música transportaram para discos a tradição, quer no conteúdo, quer na forma. É certo que a linha é ténue entre intervenção e tradição oral não engajada. Está aqui em causa o estilo corrido de narrar. Falemos a seguir de quatro nomes do planalto central (Huambo e Bié).
Zé Katchiungo, que se notabilizou pela música de resistência na Jamba (bastião de Savimbi), é exímio contador de estórias e provérbios em músicas bem dançantes, como são exemplo “ucinje uti wovava”, “ocikoko” e “osoma yoneñe”. Venâncio Viñi-Viñi (“Etc., Etc.,” em Umbundu) narra peripécias da sua vivência de contratado nas minas de ouro de Transvaal, à época colonial, bem como a humilhação que é a guerra: Trititi, não chores mais/ porque o papá/ não tem pão/ para te dar/ (…) hukalile vali, Ota, ndakava [não chores mais, querido, estou cansado], sendo que “Trititi” serve de nome de criança-personagem, onomatopeia do ritmo de balas. Bessa Teixeira é mais conhecido pela reedição de cantares populares do que por temas originais (leia origem do tema “Sulunla”). Justino Handanga é outra pedra-angular.
Em Benguela, emergiu o jovem Sukumunla, de uma geração posterior à de José Viola, César Cangue e Joaquim Viola, estes ligados à Rádio Nacional de Angola. “A monlange, kulilelile, nyoho walinga (…) omangu yovowotele, kakuli u katumãla ko” [meu filho, não chores, tua mãe tornou-se (…) cadeira de hotel, não há quem lá não sente”], (Cangue). “Ame ame Ciyunge/ vatucita kavali/ Ciyunge/ vatutuma olongombe/ ove ekumbi liainda”], (Joaquim Viola) - um lamento por exploração doméstica para pastar bois. Temos ainda Fedy, autor do sucesso “kalupeteka”.
Vozes femininas são esporádicas. Surgiu Mila Melo com rapsódia nos anos 90. Mais recentemente temos Bela Chicola e Pérola. Esta última deu nova e bela roupagem a "omboio" do cancioneiro Umbundu, tema antes reeditado pelo Duo Canhoto. Patrícia Faria recuperou “catarina”, do trecho “kakuelele ongongo kayilete” [quem não casou não sabe o que é sofrer].
Há entretanto uma canção que desafia o padrão, também absorvida em pequeno. Ela desperta curiosidade pela preocupação que parece ter havido na concepção quanto ao ritmo e métrica. Cantada é ainda melhor, mas fiquemos pelo texto apenas, o único meio possível aqui no Blog:
Ondumbu wéh [o leão]
Yalia, yalia yamanla [devorou, devorou tudo e todos]
Kulo kayipitinla [aqui porém não chega]
Ame wéh [eu]
Ndaimba odunge ocilavi [confio o material com que fiz o cerco]
Ondumbu yipita pi? [onde passará o leão?]
Termino, portanto, com duas perguntas de retórica: terá havido influência de algum “missionário” ocidental para a estética da rima? Quando surgiu a fábula desta canção atribuída à lebre?
Um abraço
Gociante Patissa, Aeroporto da Catumbela, 8 Junho 2011
terça-feira, 7 de junho de 2011
Um dos aspectos humilhantes da colonização reside na subjugação e desprezo, pelo sistema, de parte da cultura local. Angola vive ainda as confusões do aportuguesamento de nomes, muitas vezes diluindo o nexo proverbial africano. Londuimbali, por exemplo, provém de Olondui vi vali (dois riachos), Nharea é Enyaleha (estepe, prado), Bailundo é Mbalundo. Mas nem tudo foi infeliz, diga-se. Quando os tugas decidiram “forrar” com o nome Monte-Belo a terra que os donos chamam de "Utue Wombwa" (cabeça de cão), acertaram, já que há mais poesia em Monte-belo do que numa cabeça de cão.
Conhecida pela rica cultura de abacaxi, Monte-belo, a comuna que me viu nascer, destaca-se na preservação da tradição oral do povo circunscrito ao município do Bocoio. É portanto nos fecundos matagais do Monte-Belo que nasceu a fábula de hoje.
Num dos inspiradores voos de sua mãe, deu-se a fecundação de Kanende (uma espécie de passarinho). De seu pai nada se sabe, já que entre aves não há compromissos, basta o apetite e o acaso pro-criativo. De uma abençoada chuva rejuvenesceu a senhora Luavava (trepadeira), dando à luz a menina Luavava, que por fatalidade congénita não sai do chão – até surgir mão humana com uma estaca, o que raramente ocorre na mata. Moma (jibóia) nasceu provavelmente de um saudável coito, que me custa imaginar no preconceito que carrego. Não é fácil associar a imagem de um apaixonado coito à espécie feroz, como é o caso de répteis letais. É melhor ficar por aqui com essa intromissão na intimidade familiar dos outros, que até não fica bem, né?!
Luavava tem sangue verde (mesmo você, se fosse trepadeira, teria o mesmo que outros vegetais). Moma nunca esteve de pé em toda a sua vida, como também é natureza dos répteis. Kanende vive expondo as axilas, uma deselegância incorrigível das aves que vivem voando para se locomover. Cada espécie sabe escolher suas presas, fugir de seus carrascos. Tudo na boa. A mata é um verdadeiro laboratório de coabitação.
Certo dia, Moma bronzeava-se na preguiça digestiva. Ao seu lado estava uma bem nutrida Luavava, que casualmente se encontrava na posição vertical, encostada no que sobrou de uma árvore neutralizada pela época das queimadas. Kanende apreciava a paisagem, pendurada num dos galhos.
— LUAVAVA! — gritou, assustado, Moma. — Avisa Kanende para fugir, vem aí um caçador!!!
Luavava sorriu. «Que estúpido esse Moma!», pensou, «que tenho eu a ver com o caçador?».
— Anda, Luavava!!! Alerta Kanende para fugir, depressa, que o caçador se aproxima!!! «Ó Moma, a nós o caçador não assusta, não damos carne nem sangue. Isso é lá convosco», continuou, calada e cínica, Luavava. Kanende sempre no devaneio da alma, sentada no topo do tronco.
«Tuáh! Tuáh! Tuáh!», atirou certeiro o caçador. Kanende perdeu a vida sem tempo para um último assobio. Moribundo, foi cair sobre o corpo de Moma, que mal se conseguia mover. Como chegar perto da jibóia? E outra vez – «tuáh! tuáh! tuáh!» – metralhou. Morte da jibóia. Duas presas. Fartura. Mas como levar a carne para a casa? Foi então que o bicho-homem agarrou na Luavava, tanta quanto pôde, usando-a como corda. Com ela arrastou Kanende e Moma. Se o tempo voltasse, talvez Luavava ouvisse Moma, talvez Kanende escapasse…
Moral: «Caveta upindi, mbumbuangolo kacosile» (máxima Umbundu) = o que afecta a perna não poupa a rótula.
Adaptação da fábula contada pela mana Arminda Kanjala Gociante Patissa
D. Gociante Patissa, Benguela, 2 Maio 2010
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