quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Até há pouco menos de 15 anos, ainda se via nas principais cidades do litoral de Benguela o saudável "assalto" à meia-noite com cantares a batucadas improvisadas, jornada que se prolongava até ao final do dia.

O Natal, ainda mais o Ano Novo, faziam renascer o reencontro, a reafirmação da socialização e indirectamente a capacitação para a vida do ponto de vista antropológico, havendo a realçar a casa com...o ponto de partida da partilha.

"Twapandula ciwa/ weh/ etali ulima wapwa" (Estamos bem agradecidos/ eh/ hoje termina o ano) 

- trecho de gratidão no contexto de "se-se", um ritual popular Umbundu (com escalões de crianças, de homens e de mulheres), que consiste em andar de porta à porta cantando e dançando em celebração da passagem de ano. O anfitrião corresponde regalando bens alimentares, os quais serão consumidos em piquenique no dia seguinte.

Quando o coro é respondido com avareza, a sanção é por via do canto também:
"Ove ku kwete cimwe/ weh/ nye watungila onjo?" (Se dizes nada ter, por que é que construíste a casa?)

"Ha njala ko/ tucipangela onatale/ ha njala ko/ tucipangela ombowanu (não é questão de fome/ cumprimos apenas a praxe de natal/ não é questão de fome/ cumprimos apenas a praxe de bom ano).

Gociante Patissa, vo Mbaka

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

UMBUNDU: olombwa viñami otekula/ osimbu okuti olosiwe vitala ohali?/ Olongato viñami otekula/ osimbu okuti ovilema vipinga osimõlã? Viñami otekula/ osimbu okuti olosuke vifila voluwa? (...) Tulavoka Suku yokilu/ una wakulihã cilyalya olosiwe/ ovilema/ olosuke"

MINHA TRADUÇÃO: quantos cães estás a criar/ enquanto vários órfãos passam necessidade? Quantos gatos estás a criar/ enquanto pessoas com deficiência andam a pedir esmola? O que mais estás a criar/ enquanto os mendigos morrem ao relento? (...) resta-nos esperar pelo Deus do céu/ aquele que conhece o que alimenta os órfãos/ pessoas com deficiência/ os mendigos.

domingo, 21 de dezembro de 2014

"Kalufele waciliyonga; haye osika, haye otukula" (expressão sarcástica Umbundu para contextos de excessos do ego) - O Kalufele sobrecarrega-se a si próprio; quer ser o instrumentista e o vocalista ao mesmo tempo.


Lembrei-me agora disso ao cruzar com mais uma das habituais cenas de artistas que usurpam a função de crítico especializado e encarnam para si e respectivo produto o centro do universo.

"Vimo lyukwene ku tandavala"(adágio Umbundu) - "Quem está dentro da barriga de outrem não pode esticar as pernas"

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Durante um encontro familiar (no sentido alargado do conceito), um dos presentes, ao ser confrontado por um coro de pronto protesto, disse:

"Ndalweya! Vomenlã munli anyãnhã (o que se pode traduzir para o português nos seguintes termos: "Errei. Na boca há caminhos e desvios").

Nesta expressão, estabelece-se uma relação de analogia que sugere a imagem da presença de caminhos e desvios, sendo a palavra ou a mensagem comparada a um caminhante que, por vezes a contrário do que gostaria, toma o caminho errado. Claro está que, mais do que as palavras, é o tom que determina a atitude do emissor nestas coisas de pedido de desculpas.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

"Tulipula, ale tulisapwila?" (Expressão Umbundu com a função de réplica, equivalente ao Português) - Eu é que pergunto!
Ndomo (Exemplo)
"Nye olinga palo uteke ulo?" (O que fazes aqui a esta hora da noite?)
"Tulipula ale tulisapwila?" (Eu é que pergunto!)

"ilu leya ocipepi, oko valaña lokukwatakwatako" (expressão sarcástica Umbundu para se referir a oportunistas) - O céu chegou-lhes pertinho, passam o dia a tocá-lo.


"Nda ka vili, visipe!" (Expressão Umbundu que equivale ao Português) - ou parte ou racha!
Literalmente, se não comem, então que fumem!

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

"Ene akongo vosi
Kwati kolohonji
Tukayevela konyima yomunda
Omalanga yapita
Onguluve yapita
Tukayevela konyima yomunda
Cikale olohonji
Cikale lovota
Tukayevela konyima yomunda"

ATENÇÃO: No final do dia, anuncio o resultado. Pelo menos três pessoas vão ter um prémio de um exemplar do livro " Fátussengóla, o Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas."

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Umbundu: VOVILONGWA VYETU, AKULU VATI: "Kuli ekamba lyocili, kuli ekamba lyukukambisa, kuli ekamba lyukukamba angunli"


Minha tradução: NA NOSSA SABEDORIA POPULAR DIZEM OS MAIS VELHOS: "Há o amigo de verdade, há o amigo que te leva à miséria, há o amigo que te degola"

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Na queda de quem transporta um saco de alimentos, nasce a fartura de quem anda à beira de morrer à fome. Ou seja, na dialéctica da vida, o que é desgraça para uns pode representar fortuna para outros.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Cada vez que oiço/leio uma voz "civilizada" a nos tentar ensinar que o normal é ficar-se pela escrita deturpada, escondendo-se no sedentário argumento do fenómeno evolutivo das palavras, lembro-me de um aforismo Umbundu: "Epute lyukwene ka lyukuvala" (não se sente dor da ferida alheia).

“A kamba lyange/ota!/  tupapaleko” (Oh, meu amigo, vamos ao menos divertir-nos)
“Ame/ pwãi/ tê ndalikapako komanu” (Eu tenho de valorizar as relações humanas)
“Halivolela” (O meu corpo está destinado a apodrecer)
“Eteke ndifa /ame / halivolela” (Quando eu morrer, tudo apodrece)
“Nda ndakaile okambisi” (Se eu fosse um peixe)
“ Nda wamiñako” (consolar-te-ia a possibilidade de reforçar a tua refeição)
“Nda ndakaile ongombe” (Se eu fosse um boi)
“Nda watyulako” (um pedacinho do meu corpo ao menos aproveitarias)
“Eteke ndifa /ame / halivolela” (Quando eu morrer, tudo apodrece)
“Unyamo wumwe/ ndamwinle owima” (Houve um ano em que vi azar)
“Ame handi sa file” (Eu não tinha morrido ainda)
“Omunu okupita Olisiyala” (Mas alguém, ao passar por mim, cuspia de escárnio)
“Ndalehã ongongo/ weh/ Ndalehã ongongo” (Eu cheirava a sofrimento/ oh/ cheirava a sofrimento)
“Oco / pwãi/ tê ndalikapako komanu” (Por isso, eu tenho de valorizar as relações humanas)
“Halivolela” (O meu corpo está destinado a apodrecer)
“Eteke ndifa /ame / halivolela” (Quando eu morrer, tudo apodrece)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Em Outubro de 1945, um arrolamento extraordinário estava na iminência de ocorrer na Ombala de Tchiaia, capital de cinco aldeolas plantadas no cimo de montanhas vizinhas, que mais se pareciam com dedos de uma mão tentando tocar o céu: Pedreira, Kandongo, Samangula, Kawio e Tchiaia, hoje pertencentes à comuna do Sambo, município da Tchikala Tcholoanga, na província do Huambo.

Ia ao rubro a ansiedade na Ombala, como de costume em véspera de arrolamento. Cada família procurava catanar a idade dos filhos, o que contribuiria na diminuição dos impostos, o mesmo acontecendo com o número de animais domésticos. Menos posses, melhor. O que restava fazer só dependia da visita do Chefe do Concelho, branco português conhecido por observar ao mínimo pormenor até mesmo os pelos de um porco. Andava intrigado o Chefe do Concelho com a notícia do registo de dezassete óbitos em oito meses. E de nada o convenceram as justificações das autoridades, que atribuíam tal azar ao aparecimento do dragão, que fora visto por poucos sobrevoando o caminho do cemitério.

Era fenómeno raríssimo no meio rural, mas havia na aldeia uma mulher (chamada Kutala) em condições de dar conta do recado em matérias de recenseamento. Fora logo cooptada para o posto de secretária-tradutora-dactilógrafa da Ombala. Despachava diretamente o expediente com o Soba.

Nascida doentia, Kutala vivera a sua adolescência sob os cuidados de missionárias, tendo com elas aprendido as práticas de dactilografia, costura, doméstica e o domínio da gramática portuguesa. Mas com o desabrochar dos seios e o surgimento de sonhos eróticos — que ela não sabia se gostava ou se odiava —, Kutala convenceu-se de não ter vocação para madre, optando por abandonar a residência. Não era de ser pretendida por qualquer um, dada a sua capacidade de análise crítica, embora não fosse cheia de «não me toques».

Mbocoio, o felizardo marido da Kutala, não gostava nada da ideia de se trabalhar com o Soba — apesar de iletrado, o Soba era muito astuto, carismático e, dir-se-ia até, bonito. Mas foi aconselhado pelos amigos a ver o lado positivo da coisa. Ser marido da mulher mais influente no poder dar-lhe-ia um estatuto visível, uma gratificação até acima do razoável. Lá o homem aceitou, mas não sem antes propor uma das irmãs da esposa para auxiliar na lida doméstica e cuidar do Velho, o bebé do casal, enquanto a mulher fosse trabalhar — Velho era a alcunha do bebé, uma solução arranjada para evitar o desgaste do sagrado nome do avô paterno, que era seu chará.

A verdade é que também não havia muito a fazer para impedir a esposa de desempenhar tão decisivo cargo. A vontade dele não podia estar acima do poder, fosse político, administrativo ou real. Mbocoio era uma pessoa singular na Ombala, não impressionando ninguém com o seu corpo atlético, peito de almofada e altura de mercenário. Era vagaroso a reagir e cauteloso a decidir, se calhar por ser gago.

Ia o emprego no seu primeiro mês. Faltavam dois dias para o pagamento do ordenado, quando a mulher chegou à casa e disse ao marido:
— Ó pai do Velho, tem uma coisa para te falar.
— Sim…?
— O Soba disse para o outro, ainda, deixar de passar a mão na minha cara. É para evitar espinhos, porque o Chefe do Concelho está para vir… e a cara é importante.
— Como assim?
— Bom, ele me falou que, como escriturária-dactilógrafa da regedoria, a minha cara tem que brilhar como bebé. E mão de homem faz borbulhas.
— Tá bem.

Não gostou nada do recado, mas suportou. Por mais que lhe custasse travar a mão toda a vez que ela teimasse em fazer um carinho involuntário à esposa, sujeitou-se durante semanas. Era coisa passageira, acreditava. Mas a visita nunca mais acontecia e, para a sua surpresa, surgia a mulher com mais um recado do Soba:
— O Soba me falou, fala no pai do Velho ainda para deixar de me dormir em cima. — respirou fundo para buscar a coragem de dizer o resto. — Falou a parte de sentar está a ficar rasa e as mamas estão a ficar grande.
— Então, daqui p’ra frente é só de lado? É isso?
— Acho que sim…

Contrariado, Mbocoio concordou. Como se não bastasse a proibição de tocar o rosto da mulher, vinha agora mais essa de fazer amor só de lado. Sujeitou-se, todavia, outra vez. Mais um sacrifício pela subida da mulher no trabalho. Seria passageiro porque, pelo tempo, a visita estaria perto de acontecer, acreditava o homem. Volvidos três penosos meses, era ainda incerta a chegada do Chefe do Concelho. Tudo indicava que ficaria para o ano seguinte. Mbocoio começava a acreditar que as limitações do quarto acabariam brevemente.

Ansioso. Nutrido pela enorme esperança. Mas a esperança é, às vezes, a mais cruel das ilusões. Desiludido, Mbocoio veio perder a cabeça perante mais um impasse:
— Ó pai do Velho — disse outra vez a mulher —, o Soba me apanhou a sonegar e me falou que isso tudo é cansaço de fazer as coisas de lado. Falou então para o pai do Velho pensar bem, ficar ainda uns dias sem fazer nada…
— Mas é para chegar aonde com essa merda de recados? — interrompeu, colérico, Mbocoio. — Porra! Até aonde vai o poder desta merda do Soba?

Muito gostaria a mulher que o marido falasse mais baixo, ela que já não se sentia à vontade em abordar coisas do quarto por causa da sua formação religiosa. Temia que os berros acordassem a vizinhança, que era basicamente composta por familiares do marido, o que seria um escândalo.
— Vamos falar no pescoço. — rogou, impotente. — A essa hora, a aldeia está a dormir.
— Mas, para dormir com a minha mulher, ele é que tem que autorizar? Merda, pá!
— Você vai chamar de merda a autoridade?
— Merda mesmo. É isso! Merda, merda d’homem! Ele pensa que é patrão até aonde?
— Mas ele não é só meu patrão. É também regedor da Ombala.
— Safótalá, que eu mando lixar! Estou na minha casa!
— Mas ele também já viu muita coisa nesta vida. É mais velho, é a experiência dele.
— Ele mazé te quere…
— CHEGA! Olha que o nervo só te leva, não te traz!
— Chega nada! Aqui na minha casa, autoridade sou eu!
Pensou a mulher que, pelo desabafo do outro, o problema estivesse resolvido. Errado. Mbocoio saiu disparado, fora de hora, sujeito a todos os perigos, uma vez que a aldeia costumava ser invadida por onças e hienas que caçavam cabritos e porcos vadios. Podia também ser atacado por jibóias, isso, sem esquecer que naquele ano fora visto um dragão. Tudo isso punha a pobre esposa angustiada, ela que mal podia imaginar o que faria um gago impulsivo.

Feito bicho, Mbocoio trespassou o palácio do Soba, que enganava a insónia consultando os antepassados. Este pôs-se em pé em jeito de respeito, como aliás fazia sempre que recebesse visitas, por muito estranha que julgasse uma invasão do seu território quando a noite dava lugar à madrugada. Mas foi tudo tão rápido, que não teve tempo para saudar o visitante. Mbocoio fitou os olhos do Soba com toda a raiva que lhe subira à cabeça. E acertou o suposto rival com dois violentos socos da cara, até vê-lo cair para o chão como saco de múcua, embora calado como uma ovelha, já que homem grande não chora. Possuído pelo impulso, Mbocoio espancou o Soba, como se de pessoa qualquer se tratasse, mas rapidamente caiu em si. Não evitou a comiseração ao ver a mais alta autoridade da aldeia levantar-se do chão, sacudindo da calça a sujidade, com os lábios a verterem sangue.
— Ndifila nye?(1)

Mbocoio ficou estático, articulações bloqueadas pelo susto. Cometera o mais grave erro da história do seu povo. Era o primeiro a agredir um Soba, e o que era pior, ao ponto de partir metade do dente incisivo esquerdo. O Soba convocou os mais próximos conselheiros para uma reunião de emergência. A assembleia visava evitar que o Soba, figura que só participa dos contenciosos como juiz, aparecesse como vítima, o que fragilizaria a sua soberania. Decisão: guardar o segredo bem fechado, dando a Mbocoio o castigo de ser o tocador de sino da Ombala por tempo indeterminado, sendo inclusive subordinado da esposa.

Mbocoio, que temia castigo pior dos deuses pela agressão ao soberano, aceitou sem resistência. Quando a força toda que resta no ser humano só chega para chorar e implorar pela vida, todas as valentias e preconceitos reduzem-se à cinza. Mbocoio era incapaz até de se lembrar do próprio nome.

Mas como o Soba não podia surpreender a aldeia com um dente meio partido, foi feita uma operação de estética chamada omeyeko, aplicando um «chanfro em V» aos dois dentes incisivos como símbolo de nobreza.

Agora, com o doce sabor da reviravolta, o Soba até parecia ter ganho na altura. Abandonou a sala de reuniões e, sem ir muito além da porta, olhou à sua volta, sardónico. Mandou para o ar o fumo do seu malcheiroso cachimbo, como que em gesto de charme, e voltou a entrar, deixando nas mãos dos conselheiros a preocupação de propagar o fenómeno.

Contou-se que tudo acontecera durante um sonho, decifrado como recado dos antepassados: já não bastava a circuncisão para a honra masculina. E como o que vem do Soba é exemplo, surgiu uma nova profissão: a de limador de dentes. Foi então que se juntou omeyeko ao ritual da circuncisão, de tal modo que, entre a vaidade e a tradição, sorrir cerrando os dentes passou a ser documento em Tchiaia.

São os segredos e os sacrifícios que fazem o poder, portanto este não seria o primeiro nem o último pela revitalização da mística da aldeia. Mbocoio continuou pouco valorizado no seu posto de tocador de sino.
___________ 
(1) Que mal fiz para me matares?


Gociante Patissa, in «A Última Ouvinte», 2010, p. 27. União dos Escritores Angolanos, 1ª Edição, Luanda (versão com base no novo acordo ortográfico)

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

FOGO & RITMO - Agostinho Neto, 
MEU AMOR DA RUA ONZE - Aires de Almeida Santos,
DESEJOS DE AMINATA - Lopito Feijoo,
A CIGARRA DESCONTENTE - António Cardoso,
8:2= 23 - David Capelenguela,
GUARDANAPO DE PAPEL - Gociante Patissa,
CONTRAFÉ - Carlos Ferreira.

Pedidos para os emails etutanu@gmail.com ou monteiroferreira@hotmail.com
Também podem ser feitos para Rua Queiroz Ribeiro nºs 11/15 - 4920-289 Vila Nova de Cerveira ou pelo telefone 251795115.

Divulguem, por favor.

É frequente vermos, quer em textos literários, quer em informativos, quer ainda no discurso oral variado a palavra EMBALA, quando se refere à sede da autoridade tradicional do grupo etnolinguístico Ovimbundu. Ora, Ombala é equivalente ao Kikongo Mbanza, que significa sede ou capital. Neste caso, a raiz é MBALA, que tem o prefixo "O" no papel de artigo, uma vez que na morfologia Umbundu, todo o substantivo vem já acoplado ao artigo. OMBALA quer dizer a capital, a sede. A confusão pode ter partido da semelhança com a palavra portuguesa do verbo embalar. Por favor, na próxima vez que se referir ao poder tradicional, evite "embalar" no velho e confortável erro: EMBALA NÃO EXISTE. O PODER RESIDE NA OMBALA.

No meu canal do soundcloud, há um fenómeno curioso quanto aos registos mais ouvidos. Tenho lá gravação do efémero programa sobre literatura que realizei e apresentei na Rádio Benguela, músicas do meu primo Kupeletela e algumas crónicas. Mas o mais ouvido é o registo de um ensaio na linha de oratura, ainda por cima na língua Umbundu, que em um ano tem 413 plays (visualizações) e 21 downloads (descargas)

Texto em Umbundu e respectiva tradução aqui
Versão editada em Português e publicada via Jornal Cultura aqui

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Se fosse na língua Umbundu, o topónimo Kunene (de origem Bantu) seria a aglutinação do prefixo "Ku", que tem o papel de locativo (no, na), com o adjectivo "unene", que significa grande. Assim, arriscaria em dizer que a palavra Kunene (ku+unene) tem o significado de "na parte grande; na grandeza", o que não sabemos ao certo se homenageia o território ou a bravura da sua gente. De qualquer modo, os falantes de Oshikwanyama têm a palavra. Até lá, uma coisa é certa: Cunene, com C de cu, não significa mesmo nada! Um abraço do vosso Gociante Patissa, Benguela 03.10.14

Há pouco mais de um ano as redacções dos órgãos de comunicação social receberam um documento do Ministério da Administração do Território (MAT) a orientar a forma como se deveria grafar a toponímia angolana, ou seja, como escrever os nomes das localidades. O documento eliminava a letra k dos nomes de muitas localidades, entre as quais o Kuando Kubango, que o Ministério entendeu que se deveria escrever Cuando Cubango. O mesmo se passou com o ‘Cuanza Sul’ e ´Cuanza Norte’, apesar do Kwanza da moeda naconal, sabendo que o nosso Kwanza deve o seu nome ao maior rio de Angola e aquelas duas províncias também. Uma está a Norte do rio a e outra a Sul do rio. Havia outras alterações.

As alterações do MAT, em alguns casos ou nos levavam ao Acordo Ortográfico dos outros, ou nos colocavam numa situação que nos remetia à época colonial, ao transformar o Kunje (no Bié) outra vez em Stº António Gare e o Waku Kungu em Cela, apenas.

Os recentes dias de FENACULT um encontro de técnicos do Instituto de Línguas Nacionais veio recomendar que os nomes de origem bantu sejam escritos segundo o alfabeto bantu internacional, ou seja, o regresso ao k, por exemplo e às palavras nasaladas como Ndongo ou Ndalatando. Parece- me ter ficado claro que a orientação do MAT, que não era decreto nem resultava de alguma concertação do Conselho de Ministros, tinha sido dada sem prévia consulta ao Instituto de Línguas Nacionais. Suponho que nem ao Ministério da Cultura. Resultado: uma grande confusão, com documentos oficiais ora com K, ora com C. e os manuais escolares também com o k.

É hora de o MAT (des)orientar o Jornal de Angola e a TPA para que voltem a escrever Kuito, Kuando Kubango, porque nos jornais do fimde- semana passado, por exemplo, toda a gente escreveu com o K. ou então, o MAT que publique uma nota mais oficial, resultante de um decreto, para o qual, obviamente terão sido escutados os especialistas e instituições oficiais.

José Kaliengue, director do Jornal o País, Luanda, 29/09/14

Nota do editor do BlogNão houve ontem - (refiro-me à era do jugo colonial e respectiva visão etnocentrista) -, como não há hoje - (que somos um país soberano, o que pressupunha não só de território mas sobretudo de fomento de estudos para recompor o tecido identitário) - , diálogo intercultural. É a nossa sina!

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Ao ler notícia sobre um esclarecimento do exmo senhor Ministro da Administração do Território, o compatriota Bornito de Sousa, que na verdade só cuidou de reforçar a nova descoberta do seu pelouro que consiste em castrar as consoantes K, W e Y nos nomes das localidades (mesmo que de matriz africana não ocidental), desautorizando tudo o que de cultural é substracto na origem do topónimo, só podia eu estar ainda mais desmoralizado com a gestão institucional deste dossier. E já agora, nesta falta de diálogo intersectorial que se assiste, onde o Ministério da Cultura e respectivo Instituto de Línguas Nacionais vêem as suas competências ultrapassadas pela direita, que tal ser o Ministério do Comércio a decidir sobre os critérios para se legalizar uma clínica por exemplo? E para não perder a boleia, julgo "Coartem" um nome difícil para medicamento, pelo que, exmo senhor Ministro do Interior, veja lá se manda os nossos anti-motins obrigarem os médicos a mudar a escrita, se faz favor. Adaptando o pensar de um amigo por cá, vale lembrar que um país que tanto trabalho tem pela frente em termos de pesquisa, classificação e normatização do mosaico étno-linguístico dos povos que o constituem, para a consequente consistência no currículo de ensino (no que nos bastaria imitar a Namíbia), não se pode prestar a esses “adiantamentos” de se vestir de corruptelas e impô-las (num claro critério de facilitismo) como regras, nem que seja em nome da união. O recuo é possível.

terça-feira, 11 de novembro de 2014


Numa aldeia muito distante do nosso tempo, no contar do meu avô, havia espaço para tudo, menos para a felicidade de pessoas com deficiência. Acreditava-se que a limitação motora seria praga dos deuses por eventual erro dos ancestrais.

Lumbombo, cujo nome na língua Umbundu quer dizer raiz, na típica essência proverbial dos nomes africanos, era visto como um ser frágil. O próprio nome advinha do facto de nascer doentio, ficando a sua sobrevivência a dever-se a medicações à base de raízes e preces. Em meios rurais, onde são pelo trabalho as pessoas notadas, não era bem do tipo que povoava fantasias. Não se lhe via beleza nem valentia para sustentar uma mulher.


sexta-feira, 7 de novembro de 2014

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

foto de autor não identificado
Como a estação chuvosa tinha sido fraca, a aldeia vestia-se de carência. Pirão de milho ou de bombó à mesa? Quanto luxo! O povo comia mesmo era pirão de batata-doce, jocosamente conhecido por alcatrão, dado o tom castanho torrado.

Para piorar as coisas, o frio tem o hábito de tornar a rama (folhas de batateira) amarga, de sorte que pouco sabia para conduto. De mal a mal, O caudal do rio andava perto de seco, tornando impossível a pesca continental. O talho do velho Mango até tinha alguma carne, mas só para os abastados, nada tendo de valor os aldeões comuns com que permutar.

Entretanto, é em tempos difíceis que os actos de bravura mais se evidenciam. E para desafiar a crise, lá os homens todos da aldeia decidiram realizar a caça colectiva. Uns ateavam fogo ao capim, outros agitavam os animais escondidos, enquanto os demais empunhavam flechas e azagaias, ajudados por cães – cujo tributo não passava de osso limpo e míseras tripas, quando sobrassem. A carne devia ser repartida em iguais porções. Festejava-se cada regresso, não tanto pela quantidade, mas porque a aldeia via na caça uma escola de transmissão de valores e costumes entre gerações.

Mas houve alguém que achava que, caçando só, mostraria mais valentia. Além do mais, como não teria que dividir a carne, mesmo que abatesse um só coelho, bem chegaria para uma refeição com a família. Chamava-se Kameia. Foi então que, em mais um dia de caça, Kameia foi espreitar na sua “etambo” (cubata dos espíritos) para agradecer aos antepassados. Deixou lá ficar uma bola de pirão e, já cumprido o ritual, seguiu.

A mata estava mais calma do que o habitual, só os pássaros ofereciam a sinfonia natural ao vento. Não se viam borboletas. De repente, Kameia ouve um barulho, olha à sua volta e vê um tigre. O bicho procurava escapar da perseguição de um leão que estava decidido a matar o inferior hierárquico para não morrer a fome. O caçador, em pânico, não acabasse ele em ementa para os bichos, agarrou-se à mais alta das árvores ali perto. O tigre, desesperado, fez o mesmo. Só depois de atingir o topo, o tigre notou que um pouquinho abaixo estava um homem agarrado a um galho. Como o leão não podia trepar, deitou-se ao pé da árvore, certo de que o cansaço e a fome fariam a presa descer.

Depois de se acalmar, o tigre concluiu que, fazendo cair o homem, o problema do leão estaria resolvido. E começou a pisá-lo na cabeça, cada golpe mais violento que o outro. Mas o homem tinha o medo para resistir. Enquanto isso, o leão, sem pressa, já lambia os bigodes antecipadamente, imaginando o bom apetite que teria ao degustar o tigre.

Cada vez que olhasse para baixo, o tigre empurrava com mais força ainda o caçador que, em retaliação, cortava o galho onde estava pendurado o tigre. A cena repetiu-se até que o galho cedeu. Caíram o galho, o tigre e o Kameia para o chão. Tão grande foi o estrondo da queda, que o leão julgou tratar-se do fim do mundo. Inconsciente, desatou a fugir. Mas não fugiu só ele, fugiram também o tigre e o caçador.

Moral: Para cada corajoso, o seu medo.
Adaptação de Gociante Patissa, recolha do meu kota (irmão mais velho) Amós Patissa. Publicado inicialmente no Boletim “A Voz do Olho” Veículo Informativo, Educativo e Cultural da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade). Lobito, Dezembro/2007

quarta-feira, 29 de outubro de 2014


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

UMBUNDU: «Kekumbi/ kekumbi/ tukatuka kekumbi/ eci ekumbi litunda/ oco tukapitinlã.»

[ké-kú: mbi / ké-kú: mbi / tu-ka-tu:ka ké-kú: mbi / e-t∫i eku-mbi li-tu-nda/ ot∫o tu-ka-pi-tin-lã]

minha tradução para PORTUGUÊS: Ao sol/ ao sol/ quando se puser o sol partimos/ é ao nascer do sol que chegamos.”

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O País: "Antes escrevia-se Kwanza-Sul e a gora exigem que seja cuanza sul. Têm mais razão os que escrevem com K ou com C?"

Dario de Melo: "Os que escrevem com K são capazes de ter mais razão. O K era um sinal de rompimento com a realidade portuguesa, como istória sem H, é um sinal de rompimento com a estrutura gráfica portuguesa. Portanto, suponho que nem um nem outro têm razão. Ainda que me custe um pouco, porque p Kuduro é que tem razão. O kuduro é com K."

in jornal O País. Luanda, 17.10.14

sábado, 18 de outubro de 2014

Kanjala [kanja:la]- pequena fome
Canjala [Tanja:la]- relacionado à fome; propriedade da fome.

Ou seja, o nome de cada localidade conta uma história. Graças ao novo registo do MAT que visa ressuscitar a corruptela colonial, acabar-se-á com o que haveria de memória colectiva na toponímia. Está aberto o precedente: investigar para quê, se vale a força da auto-negação? Shame on you, ó Terra minha!

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

- UMBUNDU
"A mãi, eci handi, okusipa, nda capwa. Eci okuka."

"So, eci ndotava, ndisipa ale."
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- TRADUÇÃO
"Ó mãe, é já altura de deixares de fumar. Estás a caminhar para a velhice."
"O teu pai, quando o aceitei, já eu fumava."

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Na sua canção intitulada «Okucita Kuvala» (que na língua Umbundu equivale a não é fácil ser mãe), Auxílio Morais, que ficou em segundo lugar da classificação na gala final do 'Benguela, Gentes e Músicas' (27/09), retratou a mulher, no seu papel de mãe batalhadora e de poucas posses, que faz da sua tenacidade no campo, no negócio precário, enfim, o sustento da sociedade, combinando a força de vontade e a fé cristã. Para dar ênfase à actuação, AM recorreu à indumentária típica da personagem a descrever, exibindo mesmo uma bíblia em palco, um exemplo da transversalidade do teatro nas artes. E mais, AM é um exemplo de que não basta cantar em línguas nacionais, mas há que fazê-lo bem, com algum sentido de pesquisa, profundidade e correcção. Assim, sim, rapaz!

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

“É sabido que as línguas africanas, as línguas Bantu, sempre foram ágrafas, ou seja, não tinham representação escrita, mas mesmo assim, houve sempre a figura do professor, a formação informal no onjango” (de um convidado ao programa Janela Berta, TPA, há pouquinho)

«UKONGO», que em Umbundu significa o caçador, é uma dança do folclore do grupo étnico Ovimbundu, que visa, por um lado, enaltecer a figura do valente ser que alimenta a comunidade arriscando a sua vida e, por outro, evocar aos deuses para mais êxito e paz dos espíritos. Esteve muito bem representado o conceito enquanto dança, mensagem e ritmo pelo candidato Martinho Kangala que trouxe uma compilação de adágios e aforismos na canção «Olila» (em Umbundu, está a chorar) ao concurso 'Benguela, Gentes de Músicas', da Rádio Benguela, que teve lugar a 27 de Setembro no Cine Kalunga.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Foto: Webshots
No Lobito, contam-se aos dedos os restaurantes que sobreviveram à segunda república. O calar das armas e a transição para a abertura do mercado abalaram economias e hábitos de consumo. De sorte que, quando a paz não mais precisar da guerra para se auto-definir, os humanos ter-se-ão transcendido a si próprios, digo eu.
As cidades são árvores que mantêm a essência enterrada, enquanto galhos, folhas e frutos vão e vêm. O centro do Lobito resume-se a duas ruas, a de entrada e a de saída, entre o bairro da Caponte e a Zona Comercial. Só depois da Colina da Saudade se cruzam para o Compão, a sul, à procura do bom pescado da Kabaia, ou para a ponta da Restinga, a norte, onde a cidade se liberta na língua da praia, em geral para tirar proveito da escuridão que o lugar regala aos casais.
O Gunga-Bar (cujo nome provém do Umbundu "ongunga", sino) fica na rua de saída, resistindo a quaisquer infortúnios, sendo um deles, o mais pesaroso, a morte do proprietário por acidente rodoviário, há coisa de três anos. Guardo na memória a cena da moça que tiramos do sono, às duas da manhã, em finais da década de 90 do século vinte, para nos servir bebidas, numa breve fuga aos preços da discoteca ali perto. O restaurante prestava-se ao desafio de servir vinte e quatro horas por dia, muitas vezes à luz de poucas velas entre uma falha e outra da energia geral, não dispondo de uma simples fonte alternativa.
Tem rosto moderno mediano, o que só pode ter contribuído para maior fluxo de clientes. É um restaurante pequeno e fechado, rendido a essas irreverências ocidentais de igualdade entre classes, onde o cliente chega, como qualquer outro, serve a variedade que der, põe o bolso a falar com a balança e ocupa a mesa. Só depois vem o garçon para o que se quer beber.
Estava lá eu a almoçar em tempos. Às tantas, entra um vigoroso septuagenário com duas raparigas, que tanto davam para meretrizes como para netas suas com défice de decência no trajo apenas. Ocupam uma mesa ao fundo, num canto entristecido pelos vidros fumados, onde poisam objectos irrelevantes como sinal de demarcação territorial. Luwawa é um farfalhoso intelectual Bantu, devolvido pela trama da história à sua cidade natal. Bons filhos à casa sempre tornam, os não tão bons também, há quem também o diga, e até mais previsivelmente, diga-se.
Há histórias de vida que revelam fatalidade, quando a personalidade não se dissocia da etimologia do nome atribuído pelos progenitores ou o adoptado do xará. Luwawa, por falar nisso, é uma espécie vegetal odiada pelo seu fedor, o que, entretanto, não justifica que os Ovimbundu torcessem, à partida, o nariz a toda uma espécie humana com tal nome.
Velho Luwawa, de sorrisos largos como o casaco e a gravata, é um acontecimento em pessoa, um poço sem fundo que ninguém quer ter contra si. Talvez fosse por isso que, em se tratando de self-service, foi-lhe dada, e por arrasto às muchachas, uma deferência incomum: serviu, pagou e deixou os três pratos no balcão da balança, para serem pelo pessoal de serviço levados à sua mesa.
Bem, agora vou andando, que conheço ateus, conheço cristãos. Para ambos, é sagrada a hora da refeição.

Gociante Patissa, Aeroporto 17 de Setembro, Benguela, 2 Agosto 2012

Se fosse na língua Umbundu, o topónimo Kunene (de origem Bantu) seria a aglutinação do prefixo "Ku", que tem o papel de locativo (no, na), com o adjectivo "unene", que significa grande. Assim, arriscaria em dizer que a palavra Kunene (ku+unene) tem o significado de "na parte grande; na grandeza", o que não sabemos ao certo se homenageia o território ou a bravura da sua gente. De qualquer modo, os falantes de Oshikwanyama têm a palavra. Até lá, uma coisa é certa: Cunene, com C de cu, não significa mesmo nada! Um abraço do vosso Gociante Patissa, Benguela 03.10.14

quarta-feira, 1 de outubro de 2014


domingo, 28 de setembro de 2014

Texto: Jornal de Angola, 27/09/14
O músico Joaquim Viola anunciou, no Lobito, que vai lançar uma versão “mais modernizada” de “Tchiyngue”, que dá o título ao primeiro disco que editou, em 1986. O tema “Tchiyungue” fala da história de dois gémeos (Hossi e Tchiyungue), um rapaz e uma rapariga. Ela humilde e obediente e ele indisciplinado e desleixado. O cantor iniciou a carreira aos 18 anos em 1966, a tocar uma viola com apenas três cordas feita por ele. Actuou pela primeira vez em público em 8 de Dezembro de 1976 por ocasião das festas da Nossa Senhora da Graça. “Tchiyungue” já conheceu mais versões interpretadas, entre outros, por Patrícia Faria e Sabino Henda. Joaquim Viola lançou em 2006 o segundo disco, “Rádio Nacional de Angola”, com 12 temas, dez das quais de sua autoria e as outras, do filho, Paulove.

Os nossos compatriotas "geniais" que defendem essa ideia pouco aconselhável de castrar as consoantes K, W e Y dos nomes de localidades de matriz africana, tanto recorrem ao seu "know-how" (que entretanto não grafam /nóu háu/), como fazem "marketing" (que por acaso não grafam /marqueting/). E das vezes que vão ao Kunene (que imaginam /Cunene/), não perdem a chance de visitar Oshikango, Oshakati, podendo mesmo esticar para Windhoek, na República da Namíbia, com quem partilhamos o projecto Okavango Zambeze, mas não aproveitamos para beber da sua experiência no que respeita à preservação de alguns dos mais elementares aspectos da nossa matriz de bantu e pré-bantu, quer sejamos da elite, quer sejamos da plebe. Custa dizer, já que de colonização não há uma melhor que a outra, mas parece que as sequelas de alienação cultural nas ex-colónias portuguesas são bem mais graves do que França e Inglaterra deixaram. Os nomes pessoais e das localidades são geralmente adoptados de rios, montanhas, plantas e animais que, até provas em contrário, já existiam. Ensinar as línguas nacionais e ao mesmo tempo adoptar a degeneração como paradigma de registo só pode ser um "desencontro de esforços" onde claramente sai prejudicada a preservação da memória colectiva. Not a way to go!

"Nda omõlã ka kusumbile, onekulu he pata lyove ko vali" (máxima Umbundu) - Se o filho não te respeita, o neto já não é tua família.


Na minha interpretação, o respeito pelos idosos deve ser passado de geração para geração. Se os pais não respeitam os seus próprios pais, os netos ficam ainda mais desligados.

"Si popi ño, vakwê, cimbala..." (só nada digo, oh, mas que me dói, dói) - trecho de uma canção em Umbundu de um dos concorrentes do "Benguela Gentes e Músicas"

sábado, 27 de setembro de 2014

Texto e foto: Semanário Angolense, edição 548, Luanda 27/09/14

O desaparecimento do «K» das palavras de origem angolana, so­bretudo no que diz res­peito aos topónimos (nomes pró­prios de localidades), tem gerado muitas discussões. Kwanza Norte, Kwanza Sul e Kuando Kubango, por exemplo, que depois da independência na­cional passaram a ser escritos com «K» em vez do «C» imposto pelo regime colonial português, volta­ram a ser escritos como antes por determinação do Ministério da Administração do Território.

Na opinião de António Fonseca, renomado escritor angolano, numa entrevista concedida ao Semanário Angolense, publicada no essencial na sua última edição, «o ‘K’ tem de voltar a ser colocado ali onde pare­ce que querem retira-lo». «Porquê desapareceu?», questiona o tam­bém economista e professor uni­versitário da Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto.

No entender do escritor, dian­te dessa polémica, «quem defen­de que tem que escrever com ‘C’, está muito equivocado», já que «se as outras palavras do português mantêm os seus radicais, nós te­mos o direito e o dever de manter os radicais das palavras com ori­gem nas nossas línguas». Aos seus olhos «é claro que (essa palavras) se vão adaptar à norma, mas tem que respeitar a sua história».

Ele não leva em conta o ponto de vista dos que defendem o uso do «C» no lugar do «K», por se tra­tar da Língua Portuguesa e deve ser usada como ela é. Em contra­ponto, António Fonseca replica que «o Português não é uma lín­gua morta; é uma língua viva. En­tão temos que ter a nossa matriz».

Na opinião de António Fonseca, o desaparecimento do «K» nos to­pónimos «é uma espécie de recuo» perante o avanço que foi a procla­mação da Independência Nacio­nal, ocasião em que conquistamos o direito de ser soberanos.

«Digo isto com responsabilida­de própria e pessoal», sublinhou, antes de questionar: «Porque é que vamos querer branquear o nosso português, se o nosso português tem as nossas características ine­gáveis e impossíveis de negar?». Admite que a tentativa de «bran­quear o Português» é preconceitu­osa. «Só pode ser! Não tem outra explicação!», exclama.

E a exclamação de professor é maior ainda quando imagina que o fenómeno da retirada do «K» pode atingir até o nome da moeda nacio­nal. «Vão querer escrever também com ‘C’? Só espero que isso não aconteça, senão, é melhor usar o es­cudo português da antiga colonia», reclamou.

Fechando o capítulo da discussão sobre o uso do «K», António Fonseca foi veemente na réplica conclusiva: «Nós temos que ter, meus senhores, a ambição de reclamar aquilo que é nosso contributo ao imaginário e ao universo da língua portuguesa. Isso não se faz com essas concessões. Não! Tem que ser com ascensões».

Continuando na defesa da sua visão, o escritor explanou: «A escrita decorre de convenções. E quem faz as convenções são os homens. Se esses sinais não exis­tiam na convenção anterior, que as revejam. Porque temos que incorporá-los e os académicos vão ter, mais tarde ou mais cedo, que aceitar isto. Porque, quando nós não fazemos isso, o sentido das palavras perde-se e a mensagem não passa».

Um outro aspecto da língua focado nessa conversa com o es­critor António Fonseca prende-se com a grafia e pronunciação de nomes em línguas nacionais, pois ouve-se grande parte de muitos desses nomes sendo pronunciados de maneira errada em relação ao entendimento que eles pretendem passar, ou o significado que eles têm.
O professor mencionou como exemplo o nome de um seu colega - Vatomene. «Não é Vatomene. É Vatómene. Quer dizer ‘algo de bom’. Se estamos no contexto da Língua Portuguesa, então vamos pôr um acento no ô de Vatomene, que assim o nome dele vai ser pronunciado correctamente. E a mensagem vai passar».

António Fonseca explica que «às vezes é um acento que resolve o pro­blema para indicar que ali se deve pronunciar com acentuação». E cita outros exemplos dessa espécie.
«Temos o João Lusevikueno. Se se escrever só com um S, como ele tendo valor de Z entre duas vogais, o nome será pronunciado de maneira errada. Para que seja pronunciado de maneira certa deve ser escrito com dois SS – Lussevikueno (podem alegrar-se)».

Esclarecendo mais sobre esse assunto, o escritor disse que «nós temos de encontrar um sistema de grafia que conserve os valores cul­turais intrínsecos ao próprio nome - essa é que é a questão!».

E advertiu que «o fundamentalis­mo dum e doutro lado aqui não re­solve», referindo-se aos conservado­res da Língua Portuguesa e os seus semelhantes das línguas nacionais.
Ao fim de quase uma hora de conversa com o nosso interlocu­tor, depois de uma incursão por vários assuntos ligados a cultura angolana eis que António Fonse­ca, um homem falante com muito pra ensinar, ainda deixa um reca­do: «Porque é certo que estamos na época da globalização e o impor­tante é que nós aspiremos a ter um país moderno e próspero mas na nossa condição de angolanos. E isso é feito na nossa condição cul­tural».

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

para kú-duro (que advém de cu), usamos a letra K

para kwanza-Sul, bem como para Kwando-Kubango (que provém dos rios Kwanza, Kwandu e Kuvangu) somos obrigados a usar C

NÃO HAVERÁ ALI ALGO A CORRER MAL?


Numa aldeia muito distante do nosso tempo, no contar do meu avô, havia espaço para tudo, menos para a felicidade de pessoas com deficiência. Acreditava-se que a limitação motora seria praga dos deuses por eventual erro dos ancestrais.

Lumbombo, cujo nome na língua Umbundu quer dizer raiz, na típica essência proverbial dos nomes africanos, era visto como um ser frágil. O próprio nome advinha do facto de nascer doentio, ficando a sua sobrevivência a dever-se a medicações à base de raízes e preces. Em meios rurais, onde são pelo trabalho as pessoas notadas, não era bem o tipo que povoava fantasias. Não se lhe via beleza nem valentia para sustentar uma mulher.

Diz-se que quem nasce com a deficiência tem maior probabilidade de lidar com a baixa auto-estima do que aquele que a adquire depois de ter uma cosmovisão já construída. Na hipótese de ter sido, de facto, assim, Lumbombo não andava por aí a fazer da sua condição uma canção. Para a família, ele nem era assim tão inútil. Passava o dia em casa e cuidava dos animais domésticos, muitas vezes usados como moeda de permuta com produtos da loja do único comerciante, português oriundo do Norte, segundo as más-línguas, sem fundos para a passagem de regresso à Europa.

Romântico inconfesso, Lumbombo não sossegava enquanto não bolasse uma estratégia aparentemente desinteressada de atrair simpatia feminina. Foi então que aprendeu a esculpir pentes de madeira, ciente de ser a vaidade a primeira amiga de uma mulher. Nem foi preciso sequer um ano para o quintal do homem andar apinhado de beldades, perdoem-me aqui algum exagero. Tantas vezes amou, outras foi amado, ainda que às escondidas, dado o preconceito que julgava contagiosa a deficiência. E com as suas poupanças passou o mestre Lumbombo a investir na criação de gado. De frágil a prodigioso, cativava beldades e acumulava bens sem sair do lugar, sem conhecer o caminho da lavra e do rio sequer, já que só se podia mover arrastando-se.

Certo dia, foi um amigo pedir-lhe um boi emprestado para optimizar a sua lavoura. Lumbombo, cordato, conhecido mais pelos seus silêncios do que pelas palavras propriamente ditas, cedeu. Uma semana depois, vinha o recado por terceiras mãos de que o boi havia morrido na lavoura. «Eu, pagar o boi do paralítico? Nunca!», refilava o ajudado. «O que é que pode ele fazer para me agarrar, por acaso vai correr?» A repreensão dos demais aldeãos era automática, tendo em conta que é sobre a honestidade e honradez que se constrói uma nação. Aquele teimava em não ressarcir.

Um ano depois, veio a notícia de grande desalento. Uma lasca de madeira havia adentrado um dos olhos do mestre dos pentes. Ter-se-ia alojado atrás da córnea. Não havendo hospital convencional, cabia aos homens ir soprar-lhe pela boca o olho. Turnos de dois, duas vezes ao dia. E como o trabalho voluntário é, em boa verdade, rotativo e obrigatório, foi o doente consultado se permitia o vigarista soprar-lhe também, ao que anuiu, garantido que nos momentos de doença e morte, a dívida podia esperar.

Chegada a vez, o devedor curvou-se para soprar. E era impecável. Mas quando menos esperava, o doente envolveu-o num grampo de braços pelo pescoço, cortando-lhe assim a respiração, ao ponto soltar gazes. «Daqui só sais com o meu boi de volta!» Os demais ainda tentaram de tudo para arrancar dos braços de Lumbombo o vigarista, não faltando quem derramasse óleo de palma, na vã tentativa de aligeirar a separação. Só horas depois, com a presença do boi, Lumbombo soltou-o. E estava aprendida a lição. Se deve, paga! Não é com as pernas que corremos, é com o pensamento. Como diz o provérbio, «una olevalisa eye onjaki» (aquele que empresta é que é o briguento).

Gociante Patissa, Aeroporto Internacional da Catumbela, 22 Setembro 2014
(*) Adaptação de um curto conto contado pelo meu avô e xará Manuel Patissa

Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa 2015

Vídeo | Lançamento do livro A Última Ouvinte by Gociante Patissa, 2010

Akombe vatunyula tunde 26-01-2009, twapandula calwa!

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