Numa
aldeia muito distante do nosso tempo, no contar do meu avô, havia espaço para
tudo, menos para a felicidade de pessoas com deficiência. Acreditava-se que a
limitação motora seria praga dos deuses por eventual erro dos ancestrais.
Lumbombo,
cujo nome na língua Umbundu quer dizer raiz, na típica essência proverbial dos
nomes africanos, era visto como um ser frágil. O próprio nome advinha do facto
de nascer doentio, ficando a sua sobrevivência a dever-se a medicações à base
de raízes e preces. Em meios rurais, onde são pelo trabalho as pessoas notadas,
não era bem o tipo que povoava fantasias. Não se lhe via beleza nem valentia
para sustentar uma mulher.
Diz-se
que quem nasce com a deficiência tem maior probabilidade de lidar com a baixa
auto-estima do que aquele que a adquire depois de ter uma cosmovisão já
construída. Na hipótese de ter sido, de facto, assim, Lumbombo não andava por
aí a fazer da sua condição uma canção. Para a família, ele nem era assim tão
inútil. Passava o dia em casa e cuidava dos animais domésticos, muitas vezes
usados como moeda de permuta com produtos da loja do único comerciante,
português oriundo do Norte, segundo as más-línguas, sem fundos para a passagem
de regresso à Europa.
Romântico
inconfesso, Lumbombo não sossegava enquanto não bolasse uma estratégia
aparentemente desinteressada de atrair simpatia feminina. Foi então que
aprendeu a esculpir pentes de madeira, ciente de ser a vaidade a primeira amiga
de uma mulher. Nem foi preciso sequer um ano para o quintal do homem andar
apinhado de beldades, perdoem-me aqui algum exagero. Tantas vezes amou, outras
foi amado, ainda que às escondidas, dado o preconceito que julgava contagiosa a
deficiência. E com as suas poupanças passou o mestre Lumbombo a investir na criação
de gado. De frágil a prodigioso, cativava beldades e acumulava bens sem sair do
lugar, sem conhecer o caminho da lavra e do rio sequer, já que só se podia
mover arrastando-se.
Certo
dia, foi um amigo pedir-lhe um boi emprestado para optimizar a sua lavoura.
Lumbombo, cordato, conhecido mais pelos seus silêncios do que pelas palavras
propriamente ditas, cedeu. Uma semana depois, vinha o recado por terceiras mãos
de que o boi havia morrido na lavoura. «Eu, pagar o boi do paralítico? Nunca!»,
refilava o ajudado. «O que é que pode ele fazer para me agarrar, por acaso vai
correr?» A repreensão dos demais aldeãos era automática, tendo em conta que é
sobre a honestidade e honradez que se constrói uma nação. Aquele teimava em não
ressarcir.
Um
ano depois, veio a notícia de grande desalento. Uma lasca de madeira havia
adentrado um dos olhos do mestre dos pentes. Ter-se-ia alojado atrás da córnea.
Não havendo hospital convencional, cabia aos homens ir soprar-lhe pela boca o
olho. Turnos de dois, duas vezes ao dia. E como o trabalho voluntário é, em boa
verdade, rotativo e obrigatório, foi o doente consultado se permitia o
vigarista soprar-lhe também, ao que anuiu, garantido que nos momentos de doença
e morte, a dívida podia esperar.
Chegada
a vez, o devedor curvou-se para soprar. E era impecável. Mas quando menos
esperava, o doente envolveu-o num grampo de braços pelo pescoço, cortando-lhe
assim a respiração, ao ponto soltar gazes. «Daqui só sais com o meu boi de
volta!» Os demais ainda tentaram de tudo para arrancar dos braços de Lumbombo o
vigarista, não faltando quem derramasse óleo de palma, na vã tentativa de
aligeirar a separação. Só horas depois, com a presença do boi, Lumbombo
soltou-o. E estava aprendida a lição. Se deve, paga! Não é com as pernas que
corremos, é com o pensamento. Como diz o provérbio, «una olevalisa eye onjaki»
(aquele que empresta é que é o briguento).
Gociante
Patissa, Aeroporto Internacional da Catumbela, 22 Setembro 2014
(*) Adaptação de um
curto conto contado pelo meu avô e xará Manuel Patissa
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