Cancioneiro do Bocoio[i]
Autores: Francisco Soares (docente universitário, crítico literário e escritor), Gociante Patissa (técnico superior de linguística inglês e escritor), Félix Chijengue (estudante de Linguística Português)
Durante o primeiro semestre de 2010 sugeri a Félix Chijengue Matias Manuel, estudante do curso de Linguística-português da Universidade Katyavala Bwila, que fizesse um levantamento do cancioneiro tradicional da zona do Bocoio-Monte Belo, terra de origem de seus pais. O concelho do Bocoio fica situado no interior montanhoso e fértil da província de Benguela, província que principia no litoral-centro da República de Angola. É um concelho grande, cuja sede (homónima) fica a cerca de 102 km’s da capital da província e a cerca de 75 km’s do porto e cidade do Lobito. No seu todo o município tem cerca de 164 mil habitantes.
Incentivei Félix Chijengue a anotar o texto com explicações para os poemas, trazidas pelos transmissores e outras, contextuais, de sua lavra ou de amigos e familiares. Se o resultado dos comentários nem sempre foi dos melhores, o breve cancioneiro reunido revelou um material interessante e sem os comentários não podia ser analisado corretamente. Esse material junta canções atuais e outras de origem mais recuada na história de Angola e suscita-nos questões que vão de uma poética tradicional umbundo ao confronto com as versificações e poéticas de raiz europeia. Os ajustamentos interpretativos, contextualizantes, lexicais e mesmo ortográficos de Gociante Patissa acabaram resolvendo a maioria das zonas de sombra que ainda me perturbavam.
Trago agora esse material à comunidade científica interessada, incluindo os comentários escritos e transcritos por Félix Chijengue, bem como os meus e os de Gociante Patissa (em notas ao fundo de cada página). Para conferir as traduções, a métrica e o ritmo contei com o apoio de várias pessoas. Entre elas destaco os nomes do mesmo escritor Gociante Patissa, da Dr.ª Miraldina Jamba, da Dr.ª Joana Quinta e de D.ª Maria Rita – pessoas às quais encarecidamente e publicamente agradeço.
Uma breve nota, relativa à apresentação das peças, impõe-se. Os versos são seguidos por números que indicam a soma de sílabas métricas baseada na dicção umbundo corrente (confrontei falantes de umbundo dessa e de outras regiões) para que o leitor menos acostumado possa ter uma noção mais precisa das relações métricas em jogo. Nessa divisão, tento aproximar o máximo possível a grafia da fala.
Deolinda Valiangula, administradora municipal do Bocoio |
Uma última nota, relativa à ortografia (que é da responsabilidade de Félix Chijengue). Na ortografia para as línguas banto adotada por Angola
× o [s] entre duas vogais lê-se como [ss] em português;
× a colocação do [n] antes de consoante não implica necessariamente a nasalação da vogal anterior, mas a colocação da língua antes de pronunciar a vogal, como acontece com [m] e [n] em começo de palavra e antes de consoante (Bocoio, por ex., na grafia bantu, escreve-se mBokoio);
× o [c] entre duas vogais, sendo a segunda um [e] ou um [i], lê-se [tch];
× o [g] lê-se como se fosse grafado [gu] em português, não se confundindo, portanto, com o [j] (não se lê jê mas guê – na grafia portuguesa).
1º canto: o contrato (canto de resistência) – festa olundongo
Indele vikuete onya (i-nde-le-vi-kwe-to-nha = 7)
Indele vikuete olucele (i-nde-le-vi-kwe-to-lu-tche-le = 9)
Ondaka vakapa mukanda (o-nda-ka-va-ka-pa-mu-ka-da = 9)
Onjila vakapa mokalunga[1] (o-ndji-la-va-ka-pa-mo-ka-lu-nga = 10)
[2]Me-ko-nda lyo-ku-li-mbi-sa omu-nu o-lo-ndun-gê = 15)
7-9-9-10-15
Tradução
Os mulatos[3] têm inveja
Os negros têm ambição
Põem[4] a palavra na carta
Põem o caminho no mar
Para atrapalharem o juízo dos outros
Festa Olundongo.
Este canto era acompanhado com batuque[5] e danças. Geralmente era feito na festa de quem foi solto da prisão e do trabalho escravo.
Em termos de tema este canto vem responder ao colono porque agora se descobriu o caminho do Lobito à Catumbela. Eles dizem isto porque naquele tempo os escravos eram apanhados no Bocoio, eram levados de carro até ao Lobito com destino à Catumbela para trabalharem nas plantações de cana-de-açúcar. Postos no Lobito embarcavam até à Baía Farta ou ponte-cais de Benguela. Destes lugares eram retirados de carro até à Catumbela para pensarem que, do Lobito à Catumbela, o caminho é sempre pelo mar. Depois de descobrirem que, afinal, havia um caminho terrestre e próximo revoltaram-se contra o colono e outros negros que mandavam dizendo que: primeiro, não nos ensinavam a ler e punham palavras nas cartas e faziam-nos passar pelo mar quando o caminho estava aqui próximo, tudo isso para nos enganarem.
Em primeiro lugar sobre a tradução.
A primeira palavra, indele, designa ‘branco’ ou ‘senhor’, pessoa importante, com posses e que geralmente traja à maneira europeia. Na Lunda este sentido, segundo o sociólogo Vitor Kajibanga, é atual ainda. Mais recuadamente ainda, entre os bacongo dava nome aos invasores. A palavra teria raiz em hûndela ou hûndula, verbo que se traduz por “detestar, desgostar” (Batsîkama, 2010, p. 124) . Na província de Benguela e na língua umbundo reduziu-se ao significado de ‘branco’, embora Batsîkama assevere que, originalmente, designava espíritos maléficos. No entanto foi traduzido por ‘mulato’. De certo modo ‘mulato’ remete para o sentido mais antigo, presente ainda na Lunda; porém a tradução pode ter sido condicionada pelo facto de o canto se destinar a mim, branco – e, por delicadeza, não quererem nomear a minha cor de pele. Como se pode ver no comentário que juntaram, é ao colono, ao explorador (e nesse sentido ao branco), que se referem no canto. Seria, portanto, melhor traduzir por ‘brancos’, ou por ‘exploradores’ e não por ‘mulatos’, indicando-se em nota que ‘branco’ tem um significado sociológico mais do que relativo à cor da pele.
Provavelmente por distração, indele vem traduzido no segundo verso por ‘negro’. Pelas razões aduzidas, convém mudar para ‘branco’. No entanto é de lembrar que, perto do final, o comentário diz: “contra o colono e outros negros que mandavam”, o que pode justificar a tradução de indele por ‘negro’ no segundo verso (significando qualquer coisa como: ‘uns por cobiça, outros por ambição’).
Onha (onya) significa geralmente ‘inveja’, mas também pode significar ‘cobiça’ (entre outras aceções) e parece-me que é no sentido de ‘cobiça’ que está aqui (Daniel & alii, 2002, p. 611) .