Miguel Gomes (Texto), José Alves(Fotos)- Daniel Gociante Patissa nasceu na comuna do Monte-Belo, município do Bocoio, província de Benguela, em Dezembro de 1978. Tem licenciatura em Linguística, especialidade de Inglês, pelo Instituto Superior de Ciências da Educação da Universidade Katyavala Bwila (ex-Agostinho Neto).
É membro efectivo da União dos Escritores Angolanos. Foi o laureado do Prémio Provincial de Benguela de Cultura e Artes 2012, na categoria de Investigação em Ciências Sociais e Humanas, “pelo seu contributo na divulgação da língua local umbundu, na perspectiva das tradições orais, através do conto e novas tecnologias de informação e comunicação”.
Já editou cinco livros: Consulado do Vazio (poesia), A Última Ouvinte (contos), Não Tem Pernas o Tempo (novela),Guardanapo de Papel (poesia), e Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas (contos). Para além da actividade como escritor, Patissa é autor de dois blogues: Ombembwa Angola (http://ombembwa.blogspot.com/) e Angola, Debates e Ideias (http://angodebates.blogspot.com/).
Durante a conversa, Gociante Patissa analisou o estado da comunicação social em Benguela, falou sobre a importância das línguas angolanas e das dificuldades de afirmação num contexto dominado pelo português. E revoltou-se com a recente perda do k, y e w.
O Gociante Patissa tem um blogue, foi radialista, tem um percurso na comunicação social e também fora desse meio. Gosta de escrever. De que forma analisa a história do debate de ideias na sociedade angolana?
Não sei se a maturidade é isso, mas sinto que vai havendo um decréscimo em termos de espaço para discussão de ideias. No tempo de guerra havia mais. Falo isso com algum conhecimento porque tive dois programas de rádio, que promoviam debates. No tempo de guerra discutia-se um bocadinho mais, mesmo reconhecendo que por vezes se chegava ao excesso. Agora há a preocupação em ter um discurso comedido. Por aquilo que se vai ouvindo, porque também oiço a opinião dos outros, no sentido da pluralidade, os debates promovidos pela Tv Zimbo vão se destacando pela positiva. Mas o nível de discussão de ideias ainda não é o ideal. A minha grande preocupação é que caminhamos para um processo de exclusão na comunicação social.
Não sei se a maturidade é isso, mas sinto que vai havendo um decréscimo em termos de espaço para discussão de ideias. No tempo de guerra havia mais. Falo isso com algum conhecimento porque tive dois programas de rádio, que promoviam debates. No tempo de guerra discutia-se um bocadinho mais, mesmo reconhecendo que por vezes se chegava ao excesso. Agora há a preocupação em ter um discurso comedido. Por aquilo que se vai ouvindo, porque também oiço a opinião dos outros, no sentido da pluralidade, os debates promovidos pela Tv Zimbo vão se destacando pela positiva. Mas o nível de discussão de ideias ainda não é o ideal. A minha grande preocupação é que caminhamos para um processo de exclusão na comunicação social.
Falta uma perspectiva abrangente do país e das pessoas?
Sim, e mesmo quando há debates na rádio só vai ligar para participar quem tem Kz 900 para comprar saldo. Não sei qual é a alternativa que devemos criar. Sou auto-didacta em termos de comunicação social. Há muitos autores que defendem que a rádio deve reflectir a vivência da comunidade. Não é que se defenda a banalidade. Não. Mas em termos de método deve ser assim.
Um pouco à imagem de um velho jargão: o jornalismo também serve para dar voz a quem não tem voz.
Naturalmente. Acho até que os canais de telenovelas só têm o impacto que têm porque uma boa camada da população não se sente representada nos programas oficiais.
Na sua opinião, revêem-se melhor nas historietas ficcionadas?
Não só, também precisam de se ocupar de alguma forma. As pessoas têm de alimentar o seu imaginário. E a novela faz isso. Tem de se fazer um trabalho mais profundo, respeitando o princípio de que a própria comunicação é uma arte.
Os bons escritores contam histórias ricas, falam sobre as pessoas, são humanos. Jornalismo não é só isso mas também precisa dessa perspectiva. Estamos a falhar nalguma coisa?
É possível. Depois há também a questão de não haver estudos de audiência. Os que existem são pequenos e mal divulgados. Também não há concorrência no sector da comunicação social, as linhas editoriais são fracas, às vezes dá a ideia que não faz diferença ter bons programas. Não sei bem o que podemos fazer mas é preciso chegar um bocadinho mais perto das pessoas. Não no sentido de apenas trazer, mas de colher também. Costumo sempre dizer que (e agora já temos números oficiais) vivem em Luanda 6,5 milhões de pessoas e, se calhar, num fim-de-semana não se vendem mais de 50 mil jornais nas bancas e nas ruas da cidade. São números mesmo muito baixos.
Que conclusão podemos tirar daqui? As pessoas não compram porque não se revêem no que é publicado?
É preciso recuar e entender a vertente antropológica. A população angolana é maioritariamente Bantu, com uma forte tradição oral. Os hábitos de leitura são ainda um desafio. Se já temos um povo que por essência tende a ler pouco, e se depois a história que se retrata é do outro, parece haver pouca proximidade afectiva. A comunicação social tanto é carrasco, como é a vítima também. É um círculo vicioso. Os jornais acabarão por ser os mais prejudicados em termos comerciais. Uma vez estava a falar com um livreiro, o senhor Grilo, que tem um espaço no Mercado de Benguela. Havia lá um livro, uma compilação de anedotas, e perguntei: “Então os nosso livros?”. “As vendas estão um bocadinho fracas”, respondeu. Voltei à carga: “E o livro de anedotas?” “Também está a apanhar poeira”. Julgo que a rádio é, actualmente, o meio mais potente, acessível e barato. Há várias razões que concorrem para essa importância. Devemos pensar melhor nas vantagens das emissões de rádio em línguas nacionais. No fundo isto está ligado à nossa história: a consolidação da caminhada, da independência e de nós próprios enquanto nação contou muito com a comunicação social, especialmente a rádio.
Como analisa a circulação e acesso à informação fora de Luanda?
O cenário parece ser mesmo muito pobre. As províncias estão praticamente excluídas deste processo porque apenas têm a internet e a voz oficial do Estado (TPA, Jornal de Angola eRádio Nacional e afins). Os cidadãos que vivem fora de Luanda não têm acesso à diversidade. É um quadro preocupante, tanto do ponto de vista do consumo da informação, como da sustentabilidade da profissão de jornalista. A história das profissões ligadas à intelectualidade tem de ser vista de dois galhos: os que existem e os que têm de existir. Ao nível da imprensa escrita, que é onde temos mais debilidades, a situação é complicada. Olhando para a realidade de Benguela, tivemos o Kessongo, do jornalista Ramiro Aleixo (actual director do semanário Agora), ou o Cruzeiro do Sul, do Ismael Mateus. Agora há apenas o intermitente Chela Press. Se olharmos para Benguela como segunda capital, é preocupante que, tirando as rádios, não se produza mais nenhuma informação local.
Voltamos ao velho problema: como se vai investir em algo que não tem retorno económico?
Pois, realmente não é fácil. Se calhar o Estado deveria pensar em subvencionar a comunicação social e reactivar o parque industrial ligado ao sector. Todo o papel é importado. Eu colaboro com o Jornal Cultura e, sem grande justificação, por vezes o número de páginas é reduzido. Será que é falta de papel? É preocupante. Houve agora um apoio ao sector da literatura mas se calhar também temos de pensar em medidas concretas para fomentar a produção de informação. A rádio e televisão têm outra dinâmica e enchem o coração das pessoas mas são sectores fechados à concorrência. A visão que existe é sempre a mesma. Isso cria uma sobrecarga noutros sectores do sociedade. Quando há concursos públicos de emprego apenas a educação e a saúde têm vagas massivas. E aquelas pessoas formadas em outras especialidades vão todas para o professorado tendo, ou não, vocação. Fazem falta mais rádios e eu sei que, pelo menos, duas pessoas de Benguela têm projectos de investimento nesse sentido. É preciso abrir o espaço público aos cidadãos. A rádio, em muitos países africanos, é quase uma instituição. É possível. No meio está a virtude. É sempre preciso encontrar este elemento de equilíbrio. Às vezes eu penso que há um pouco de receio dos excessos.
É um receio que ainda se mantém nas altas esferas políticas e militares do país?
Certezas não tenho, mas às vezes acho que quem vem de um quadro de guerra, como nós viemos, tendo um país como temos, com esta diversidade étnica, linguística, e ainda algumas mágoas por resolver, provavelmente esse receio pode passar pela cabeça de algumas pessoas – e eu penso até que é legítimo. Mas está visto que o quadro actual também não ajuda em nada. Mesmo até na perspectiva do exercício da cidadania. É preciso que surjam novos operadores e diversificar a programação das rádios e televisões. Não é saudável que o espectro continue como está. É mesmo importante trazer diferença para o debate público. É importante estarmos sempre preparados para o lugar do contraditório.
Mudando um pouco de assunto: como analisa o acesso à informação dentro da tradição umbundu? Ou seja, como funciona a circulação da informação e será que é possível fazer uma comparação desse modelo com a sociedade actual?
Uma coisa que precisamos de resolver é que jornalismo é sempre jornalismo, independentemente da língua em que se trabalha. Só que em Angola as coisas não funcionam assim. As línguas angolanas, na minha opinião, estão relegadas ao formato de animação e entretenimento. O jornalista – eu duvido se há jornalistas de línguas angolanas, tendo em conta a prática – está a traduzir as notícias a quente. Não estou a ver como se pode fazer jornalismo baseado na tradução, porque isso é apenas interpretação. Antigamente, e eu tenho arquivos recolhidos, o programa de mobilização patriótica “Angola Combatente” era tão rigoroso, e aquele trabalho era tão importante na veiculação da luta anti-colonial, que havia escrita jornalística em umbundu. Eu tenho alguns desses textos.
Criados pelo jornalista?
Sim, não posso jurar se foi traduzido, ou se foram os jornalistas da época que escreveram tudo. Hoje em dia o locutor pega no texto em português e traduz para umbundu. E depois acontecem as deturpações. Porque lá está: a concepção é que o jornalismo tem de ser na língua oficial, o português. Só que isso não faz sentido. Mas é assim que as coisas acontecem. Talvez no canal Ngola Yetu seja diferente, não conheço bem, mas fora de Luanda é o que se assiste.
Com que consequências?
Nos programas em umbundu, mesmo que existam excessos, as coisas acabam por ser desvalorizadas. É como se não fosse jornalismo. Se quisermos olhar para as línguas com o valor que devem ter, devemos transportar e aplicar o mesmo rigor que se impõe ao locutor em língua portuguesa. As línguas angolanas continuam relegadas à subalternização. Quando vim do interior, em 1985, com sete anos, numa altura em que apenas tínhamos acesso à TPA, aRádio Benguela emitia uma rádio-novela que tinha muita audiência (hoje seria diferente). Mas fez-se alguma coisa. Precisamos de uma rádio mais criativa. E, naturalmente, precisamos de mais espaço para as línguas angolanas. O espaço disponível é muito pequeno. A Rádio Benguela apenas tem uma hora diária da sua emissão em umbundu.
Acabou por não responder directamente à minha questão: como se processava o acesso à informação dentro da tradição umbundu?
Acho que não havia.
Não há nenhuma ligação que se possa fazer com a realidade actual? Como é que as pessoas acediam às coisas que se passavam na comunidade?
Na minha época a comunicação era muito comprometida. Era propaganda política. Tínhamos apenas a rádio Vorgan, da Unita, e os programas Angola Combatente, entre outros. Era uma mobilização orientada. Não havia debate público. No entanto, a forma como a estrutura social estava organizada no meio rural ajudava à circulação da informação. Por exemplo, a produção de fuba, como não há moageiras industriais, é feita na pedra. Então as mulheres cantam. Socializam. O mesmo pode acontecer também na lavra, na caça, no final do dia. Há ainda o ondjango, um espaço destinado ao diálogo.
Então esse espaço pode ser considerado um espaço de troca, de partilha de informações, é um espaço de comunicação social. Concorda?
Sem dúvida. Visto por esse lado, faz todo o sentido. Os óbitos também assumem esse papel. Ainda recentemente um tio dizia-me com lamento: “Hoje em dia, os jovens quando chegam a um óbito pegam num baralho de cartas e ficam a um canto. Muitas vezes nem chegam a saber a causa da morte do finado”. Aquela preocupação de ficar ao lado dos mais-velhos, de ouvir as conversas, de saudar as pessoas. A saudação entre os ovimbundos é uma instituição. A gente não diz “bom dia, como está?”. Não. A gente senta, explica, não só de hoje mas dos dias anteriores, introduz-se o provérbio, a parábola. Mesmo aqui, no ambiente de trabalho, percebem-se esses mecanismos. Quando transportados para a cidade acabam por enfrentar dificuldades de sobreviviência. O dia-a-dia das pessoas é muito diferente. No meio rural, os agentes de socialização funcionam melhor. Como o relógio não tem grande função, o diálogo acaba por ser o relógio. O tempo individual depende do fim do diálogo. Na cidade, as coisas são diferentes porque as pessoas têm de cumprir horários e têm um estilo diferente de vida.
Foi também por isso que decidiu criar um blogue em umbundu? Para divulgar e aproveitar as novas tecnologias e dinamizar a utilização do umbundu?
Ainda bem que levanta essa questão. Agora estou um bocadinho contente porque o contador de visitantes, que no início era dominado pelo Brasil, Portugal e Angola, inverteu-se. Portugal lidera as visitas. É verdade que o principal fluxo de visitantes do blogue tem origem na diáspora. O blogue é quase uma atitude desesperada. Eu preciso de praticar o umbundu, de manter a língua viva. Não havendo mecanismos físicos, a pessoa usa o blogue.
Durante algum tempo o blogue era só em umbundu, depois resolveu traduzir. Hoje é bilingue. Para si é mais fácil escrever em umbundu ou em português?
Escrever em umbundu demora muito tempo. É mais fácil escrever em português – porque o umbundu não tem dicionário. Eu faço traduções. Para traduzir três páginas para umbundu posso levar um dia inteiro. O dicionário é mental. Se alguma expressão, se alguma ideia me escapa, tenho de confirmar junto de amigos ou conhecidos. É muito trabalhoso. Como não tenho muito tempo, faço textos curtos e bilingues. Produzir uma crónica em umbundu não é fácil.
É difícil encontrar as palavras certas ou as ideias mais precisas?
Tenho mais dificuldades com as palavras. Em termos socio-linguísticos tudo está por fazer. É natural que a prioridade tenha sido a busca da paz, essas coisas todas, e não há debate sobre isso porque estamos de acordo. Mas a parte mais triste é que continuamos com os paradigmas que foram elementos de opressão. É uma vergonha dizer isto mas é a realidade.
Pode dar-nos um exemplo?
Em alguns aspectos, a afirmação enquanto elite depende de quanto tu finges não saber falar as línguas nacionais.
Nesse caso temos de lembrar que uma série de angolanos foram “assimilados” pelo regime colonial – e para aceder a essa categoria administrativa tinham de provar que comiam de faca e garfo, falavam e escreviam bem o português, tiveram de renunciar às línguas angolanas e assumir a religião católica. Estas pessoas, que depois da independência ocuparam lugares de destaque na estrutura social e política do país, ainda têm uma grande preponderância?
É isso. Mas cinquenta anos depois, a questão já não é o mal que fizeram às línguas angolanas. A questão é o que não estamos a fazer por elas. Este é o problema. Agora o Ministério da Administração do Território (MAT) está felicíssimo da vida a festejar uma nova invenção que consiste em castrar as letras k, y e w. Eu não aceito. Eu não acredito que isto está a ser feito por um angolano. Não acredito mesmo.
O argumento do MAT é que há um decreto (do tempo colonial) que obrigava a escrever dessa forma. E que estão a reanalisar o caso.
Mas lá está, o ministro é formado em Direito e os advogados ou juristas têm alguns problemas com as interpretações. Talvez seja um defeito de formação do ministro Bornito de Sousa. Como é que um país que se considera soberano vai recorrer a este tipo de medidas? É absurdo pensar que tudo o que foi trazido pelos portugueses é errado. Não é por aí. Mas é necessário criar um crivo para analisar as coisas positivas. Uma das coisas positivas é a própria língua. Só que o português, em Angola, será sempre uma língua infeliz enquanto representar a opressão.
Esse sentimento ainda é muito visível?
Por exemplo, os falantes de línguas angolanas têm como que um botão. Eu ligo o meu botão como angolano e ligo o meu botão como estrangeiro. Eu nunca vou falar Catumbela (com u) porque a palavra não existe. As palavras evoluem, claro, mas a palavra de origem é Katombela. Dificilmente vai ouvir um falante de umbundu a dizer Katumbela (com u). Não existe. Mas lá está, o meu amigo Luciano Canhanga (também conhecido por Soberano Canhanga) defende o seguinte: um país que ainda não conseguiu recuperar os aspectos relacionados com o ensino identitário em matéria de línguas angolanas não pode sair por aí a vender corruptelas. Algumas pessoas que estão em postos de decisão não falam as línguas angolanas e nem sequer têm a sensibilidade para ouvir a opinião dos outros.
O que se deve fazer neste caso?
O opressor colocou-nos todas estas dificuldades mas eu tenho 500 anos de resistência e as nossas línguas sobreviveram. Neste momento, o meu próprio governo está a defender leis que também o opressor defendia. Há dias ouvi o director do semanário Expansão, Carlos Rosado de Carvalho, a dizer: “Eu tenho a minha opinião, mas sei que no fundo, no fundo, quem vai decidir é o governo”. Nós temos a nossa opinião de protesto. Se o MAT quiser impor até ao fim a sua vontade, o que vamos fazer? Nada. Mas vai-nos doer. Será uma espécie de neo-colonização. Isto dói! Em nome da legitimidade podem ser cometidos erros, como este, que é um erro, mas se eu me acobardar e deixar de defender a minha identidade – então é melhor deixar de existir. O bom-senso tem de prevalecer. Os nomes das localidades são importantes porque os povos africanos, sobretudo os Bantu, não dão nomes à toa. Todo o nome é um provérbio, uma história e através dos nomes das localidades é possível contar a história do país, das províncias, das cidades e das aldeias.
Também seria uma forma de aproximar as pessoas da escola e do sistema de ensino.
Sim. Tem de haver um diálogo intersectorial. O MAT tutela o território no seu aspecto demográfico e da geografia, mas tem de respeitar aquilo que é a interdisciplinariedade. Há uma vertente antropológica que o MAT não tem legitimidade para analisar. Não é da sua competência fazer um estudo da história do país. Então tem de haver concertação. Onde está o Ministério da Cultura que ainda não deu um murro na mesa?
Também o Instituto de Línguas Nacionais poderia ter uma palavra a dizer. Qual é a sua opinião em relação ao instituto? A sua função é profunda e nobre: promover, investigar e estudar as normas, publicar gramáticas e material de apoio. Mas parece ter poucos investigadores e poucos meios.
A minha impressão é um pouco limitada. Penso que a sua acção em temos de visibilidade está muito centrada em Luanda. Por outro lado, há a escassez de quadros. É preciso encontrar uma forma de investir a fundo nas línguas angolanas. O estudo acaba sempre por ser um processo a médio e longo prazo. E o país está a formar linguistas.
É um deles.
Mas não tenho experiência. Eu encaro a escrita como um exercício de identidade. É quase mecânico abordar certas questões. As questões culturais estão sempre presentes nos meus textos. Estamos atrelados a esse tema. É preciso o país gizar um programa sério para inventariar os quadros que tem e depois potenciá-los. Nem que tenhamos que recorrer a cooperantes – e não podemos ter patriotismos meio-cegos quanto a isto. Precisamos de técnicos que nos capacitem. Eles que venham.
Mas a linguística tem sido uma das áreas onde mais angolanos se têm formado. O que fazem estas pessoas?
Isso leva-nos a outra questão e já escrevi um artigo no Jornal Cultura sobre o assunto. Temos de questionar o que estamos a formar. Se a universidade é, por definição, o local certo para o exercício científico, então como é que uma universidade que me gradua não tira proveito do produto que eu deixo enquanto tese? Começa por aqui. É preciso rever a constituição dos conselhos científicos. É preciso reactivar o princípio da responsabilização das pessoas pelas suas falhas. Não pode haver denúncias de corrupção e venda de teses e não se faz nada contra. Não há fumo sem fogo. Se há sucessivas denúncias é porque isso existe e tem de se fazer uma investigação. E depois devíamos ter conselho científicos suficientemente consistentes para apurar, entre as teses apresentadas, as que têm qualidade e devem ser vertidas em livro. As teses estão nas prateleiras a apanhar poeira. No dia a seguir à apresentação da minha tese estava a ser contactado pelo coordenador do curso (pessoa por quem tenho muita consideração) para dar aulas. Quer dizer que a universidade tinha essa expectativa. Mas eu não tenho vocação para dar aulas.
E se não for a dar aulas, não há mais espaço na academia?
Como disse, não aceitei a proposta, mas a minha condição foi: organizem um sector versado para tradução (fiz linguística para inglês, sei português e umbundo, podia fazer algumas coisas interessantes a este nível) e para fazer pesquisa e eu vou contribuir. Nem que não me paguem.
Para fazer investigação?
Naturalmente. Nem todos temos vocação para dar aulas. Então, temos outras ferramentas. A universidade não pode ser só isso. É preciso activar o sector de investigação científica para produzirmos textos e ensaios sobre Angola e os angolanos.
As universidades não estão a fazer investigação científica? Nesse caso, não serão bem universidades.
Não estão mesmo. Não estão. Imagine só: estudamos Noam Chomsky, que é um quadro que não se questiona, estudamos Stender-Petersen, todos os nomes importantes da linguística. Mas, depois, falta-nos o conteúdo local.
Uma ligação à terra.
Exacto. A força da gravidade parece que não existe. Então os estudantes ficam ali encerrados em algo que não lhes toca.
As pessoas sentem a falta da tal ligação à terra e isso cria desinteresse nos alunos?
Levantei esse tema na minha tese de licenciatura. Comecei a aprender inglês em 1993. Mas uma das aspirações era emigrar e encontrar melhores condições de formação e trabalho. A minha força estava ligada a um objectivo. Dá a impressão que se a pessoa não associa a aprendizagem a alguma coisa acaba por apenas cumprir calendário. É preciso associar o que se aprende a uma utilidade prática. Essas falhas não são apenas dos sistemas de ensino, estão ligadas à ideia de cidadania. Quando percebemos que o que estamos a aprender serve para a vida tudo parece mais simples. Mas quando isso não acontece fazemos um curso pela simples obrigação de estudar.
De certa forma estamos a falar do valor da cidadania: de participar, de ter objectivos, de ser um agente activo no meio social?
Acho que sim, mas os contextos influenciam a forma de pensar. Não estou a dizer que sou perfeito e que não cometo erros graves. Mas há sempre aquele ponto em que questiono: o que estou a fazer pela minha terra? Precisamos de espaços de discussão, de debate. E de passar valores. Carecemos disso.
Nesse caso, como vê a participação dos jovens na política activa? É filho de um político.
Mas sou apolítico.
Não se revê em nenhum partido?
Revejo-me na união. Não tenho cartão de nenhum partido. Se o partido em relação ao qual a minha família está ligada praticar um acto que viole aquilo que eu considero soberano – indigno-me. Porque eu acho que Angola está acima de qualquer intenção político-partidária. A acção dos partidos só faz sentido se promoverem a união. Já sofremos o suficiente.
Já estamos nesse estágio? Os partidos contribuem para o conjunto ou estão amarrados a agendas e projectos pessoais?
Os partidos não sofreram nada, quem sofreu foram as pessoas. Então não podemos esperar que, de repente, as pessoas passem uma tábua rasa sobre as suas mágoas. É pedir demais. O que se quer é que aquelas pessoas que têm poder para dar a sua opinião e tomar decisões, se lembrem sempre que o compromisso que temos com a pátria é promover a união. É muito fácil dizer que vamos esquecer o que está para trás. Não vamos esquecer nada. Vamos é aceitar que isso passou e que depois virá algo muito melhor.
Até porque o tempo da história não funciona assim. Não é possível parar tudo e recomeçar da estaca zero.
É verdade. Isso não existe. Quando vejo alguns jovens com argumentos radicais e a dizer “vamos voltar à guerra!”. Epá! (risos)
Fica assustado? Como analisa esse tipo de discursos agressivos, que ainda se mantêm entre nós?
Em todos, ou quase todos, os meus livros entra uma personagem chamada Mbali. Mbali é o nome da minha tia. Era nas costas dela que eu corria quando a guerra rebentava. Sempre que se ouvisse um tiro de ataque eu subia às costas da minha tia. Se eu não consigo livrar-me dessa personagem… A minha mãe, que já não vive, infelizmente, carregou até ao fim da vida uma cicatriz na bochecha. No rosto. Foi um tiro. Eu estava às costas dela. Se tivesse tido menos sorte a minha cabeça poderia ter sido atingida. Como posso dizer que quero guerra? Não quero. Não guardo mágoas, porque na guerra não se oferecem caramelos. A guerra é assim e a guerrilha ainda é mais brutal. Não faz sentido apelar à guerra. Vamos ao debate de ideias, vamos condenar os excessos, sejam de quem for (polícia, oposição, governo). Porque não há excesso que construa.
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