(O presente artigo foi apresentado na
conferência sobre «O Português e a Sua Origem
Latina Como Língua de Universalidade, Versus as Línguas Naturais de Angola»,
organizada pela Casa de Angola em Lisboa, Portugal, a 03/12/14)
Inicio estas linhas sem saber, à
partida, que género de texto adoptar. Ao contrário do que carinhosamente se
espera, desta vez não trago à tertúlia nada assim de sistemático, tal é o
momento de particular desmoralização, quer enquanto estudioso, quer enquanto
patriota. O melhor talvez fosse nem sequer vir. Entretanto, fala mais alto o
adágio Umbundu, minha língua materna, segundo o qual "Wakukavonga wakuvela uloño; nda ka kusawila, okuliminlã". Traduzido, daria em qualquer coisa como
«Quem te
chama põe à prova a tua inteligência; ou algo tem a te informar, ou a te
oferecer».
Falar do “Português e a sua Origem Latina como Língua de Universalidade, Versus as
Línguas Naturais de Angola” é outra boa oportunidade para a partilha de
saberes e pensares, mas, diante da tendência cada vez mais sólida, cá dentro, de
subalternização das nossas línguas (africanas, Bantu e pré-Bantu), questiono-me
se vale a pena investir no debate fora de portas em prol do respeito pela
herança identitária, quando a caravana da discussão esbarra, cada vez mais
afónica, na surdez institucional.
O
paradoxo mais recente é apregoar a inserção das línguas nacionais no currículo
de ensino e ao mesmo tempo investir formalmente na corrosão da memória
colectiva com a imposição de um padrão de topónimos baseado em corruptelas.
Ao
ler notícia sobre um esclarecimento do Exmo. senhor Ministro da Administração
do Território (MAT), que na verdade só cuidou de reforçar a nova descoberta do
seu pelouro que consiste em castrar as consoantes K, W e Y nos nomes das
localidades (mesmo que de matriz africana não ocidental), desautorizando tudo o
que de cultural é substracto, só podia eu estar ainda mais desmoralizado com a
gestão institucional deste dossier que tanto denota falta de diálogo
intersectorial, onde o Ministério da Cultura e o respectivo Instituto de
Línguas Nacionais vêem as suas competências ultrapassadas pela direita.
Abro
parêntesis para especular morfologicamente. Se fosse na língua Umbundu, o
topónimo Kunene (de origem Bantu) seria a aglutinação do prefixo
"Ku", que tem o papel de locativo (no, na), com o adjectivo
"unene", que significa grande. Assim, arriscaria em dizer que a
palavra Kunene (ku+ unene) tem o significado de "na parte maior; na
grandeza", o que não sabemos ao certo se homenageia o território ou a
bravura da sua gente. De qualquer modo, os falantes de Oshikwanyama têm a
palavra. Este “Cunene” oficial não existe no imaginário do povo, não significa
mesmo nada.
Por
estas e por outras cá em Angola, é ainda comum o uso do
termo dialecto para designar as línguas nacionais de origem africana,
sejam elas de matriz Bantu ou pré-Bantu, remetendo-as implicitamente ao papel
de subalternas da língua portuguesa. Por desconhecimento ou por preconceitos, é
ponto assente que tal fenómeno é, mais do que problema linguístico, uma questão
social e de políticas de Estado.
Se
é inquestionável o avanço científico da língua portuguesa e todas as vantagens
que ela representa, também não anda longe de dislate chamar as outras línguas
(as da identidade cultural dos indígenas de então) – com estrutura própria,
sublinhe-se – de dialectos. Seriam por acaso dialectos relativamente ao
português, do qual não originam? Ora, como defende MCCLEARY, Leland[1]
(2007: 11), “a sociolinguística não usa a palavra dialecto nesse sentido
pejorativo. Para a sociolinguística, dialecto quer dizer,
simplesmente, uma variação regional”.
Há quem se apegue ao pedantismo redutor
de que em Angola só o português é língua nacional, no sentido restrito de idioma
que se estende a todo o território. Isto é bem verdade, tal como não deixa de
ser verdade que temos um país constituído por um conjunto de nações, o tal
mosaico etno-linguí
Em meu entender, para um Estado que só
existe desde 1975, e com tudo por fazer no campo sociolinguístico (pois a
prioridade até 2002 foi, evidentemente, dada à busca da paz e estabilidade
nacional), o mais sensato seria abraçar, estudar, classificar, normatizar.
Faria sempre melhor justiça à história. Há que perceber que há uma dimensão de
Angola que não cabe em documentos nem na “dicção padrão”.
O português vai bem e recomenda-se, mas
também se arrisca a reaver a capa de língua infeliz, enquanto for medida
latente para a opressão, ainda que disso não tenha culpa. A caminho de quatro
décadas de independência em Angola, não faz muito sentido o recurso à
reminiscência das sequelas da alienação colonial e da política do assimilado. A
questão já não é o que fizeram de mal às nossas línguas; a questão é o que nós
não estamos a fazer de bom a elas, no que nos bastaria imitar a Namíbia e
Moçambique.
Gociante Patissa, Benguela, 29 de
Novembro de 2014
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