DIALECTOS, VARIAÇÕES REGIONAIS E ALGUMAS BARREIRAS ENTRE OS OVIMBUNDU (Gociante Patissa, Jornal Cultura 1-14 Abril 2013)
Em Angola, é comum o uso do termo dialecto para designar as línguas nacionais de origem africana, sejam elas de matriz Bantu ou pré-Bantu, remetendo-as implicitamente ao papel de subalternas da língua portuguesa. Por desconhecimento ou por preconceitos, é ponto assente que tal fenómeno é, mais do que problema linguístico, uma questão social e de políticas de Estado.
A caminho de quatro décadas de independência, urge esbater tal herança pejorativa da colonização portuguesa, de si célebre pelo investimento na fragilização da identidade cultural dos indígenas de então. Como defende MCCLEARY, Leland (2007: 11), “a sociolinguística não usa a palavradialecto nesse sentido pejorativo. Para a sociolinguística, dialecto quer dizer, simplesmente, uma variação regional”.
Ainda quanto aos conceitos, o site http://conceito.de/dialecto diz que dialecto é “todo o sistema linguístico que deriva de outro mas que não apresenta uma diferenciação suficiente relativamente a outros de origem comum (…) Dialectos são, na realidade, formas particulares de falar ou de escrever uma determinada língua”.
Quanto à demografia, segundo Fernandes & Ntondo (2002), citados em KAVAYA, Martinho (2002: 54), formam o grupo Ovimbundu, os va Viye, Mbalundu, Sele, Sumbi, Mbwei, Vacisanji, Lumbu, Vandombe, Vahanya, Vanganda, Vatchiyaka, Wambu, Sambu, Kakonda, Tchicuma, e este grupo corresponde ao maior etnolinguístico angolano (acima de 4.500.000 pessoas) e comunica-se na língua Umbundu.
Tirando proveito do meio familiar como laboratório sociolinguístico, permita-me, caro leitor, recorrer a algumas ilustrações na primeira pessoa, à guisa de estudo de caso.
Pirão com conduto
No contexto de poligamia, partilhamos várias vezes o mesmo tecto com outras mulheres de meu pai. Culturalmente, as “sepakãi” (rivais) são vistas como “irmãs mais-novas” de nossa mãe, a primeira esposa (sendo isso mais determinante do que a idade cronológica para o estatuto de“Ukãi watete” ou “ndona yukulu”, a principal do patriarca).
Se no princípio tratávamos por “tias” as outras esposas, uma posterior reprimenda do pai viria a fazer-nos mudar. (Não existindo designação correspondente a meio-irmão, as crianças de outros lares seriam nossas primas?) Passamos a trata-las por “mãmã”, diferente de “mãi”, que se reserva à progenitora. Na verdade, não se tratou de invenção nossa, pois é “mãmã” qualquer prima ou irmã da nossa verdadeira mãe, como seria “papai” o nosso, ao passo que usamos papa [pa:pa] para nos referirmos aos seus primos e irmãos. Curioso é que mesmo que sejam do primeiro grau, irmã ou prima do nosso pai é “tia”, bastando apenas que não sejam do mesmo género.
Em 1992, a passar uma temporada na comuna do Monte-Belo, que dista cerca de cem quilómetros a leste do Lobito, senti-me intrigado por uma resposta, quando pretendia saber a ementa do jantar, mais concretamente o que seria acompanhante para o pirão de milho, que é invariavelmente a base das principais refeições no meio rural. “A mãmã, tulya la nye?” (Com que vamos comer?) A resposta foi: “Tulya mwenle lombelela” (literalmente, vamos comer mesmo pirão com conduto).
Ainda adolescente e com poucas noções de variações regionais, levei a resposta a mal, vendo nela um corte rude, que em Umbundu dizemos “oku tesula”. Foi nessa ocasião que passei a saber que a “tia”, oriunda da Chila, comunidade fronteiriça entre VaCisanji (Bocoio, província de Benguela) e VaSele (província do Kwanza-Sul), tinha percepção diferente, como adiante explica SAYANGO, Avelino:
‘Nas áreas do Huambo, Bié e Kaluquembe, o termo “ombelela” é usado para designar qualquer tipo de conduto que acompanha o pirão. Assim tanto serve para designar carne de vaca ou de porco, de ave, como feijão, ervilha, ovos preparados de várias maneiras, folhas de mandioqueira, de abóbora, cogumelos, etc. Nas mesmas áreas, o número oito diz-se “ecelãlã” e o número nove “ecea”. Pelo contrário, nas áreas Hanya, Cisanji e Cilenge, o termo “ombelela” tem um sentido restrito. Designa a carne servida com pirão. Não se estende aos legumes ou verduras. Carne que se não come, não se designa por “ombelela”. Assim pode-se imaginar a decepção dum Cisanji, em casa de bieno, a quem se anunciou um almoço suculento de “ombelela” ao encontrar na mesa um prato de pirão com simples folhas de mandioca!’ (Sayango, Avelino, 1997: 8)
Por outro lado, em Benguela, "sekulu yange" significa meu marido (como tal estritamente feminino), ao passo que no Huambo é normal um menino dizer"sekulu yange", pois estará simplesmente a referir-se ao seu avô. Na senda das diferenças, acrescentemos outra que tem a ver com tabus. O município do Bocoio, dos Va Cisanji, situa-se no centro, tendo a oeste o Lobito, 70 quilómetros, e a leste o Balombo, também à mesma distância. Se para os VaMbalombo, a expressão “oku tutumunlã ketako” significa sacudir a poeira da região das nádegas, já para os VaCisanji tal seria um profundo disparate, porque interpretariam como sendo sacudir os órgãos genitais.
As barreiras que ora abordamos são de natureza semântica, susceptíveis que são de criar constrangimentos entre falantes do Umbundu. E como bem sustentam Cyranka & Pinto (2010: 502), “a sociolinguística ensina-nos que, onde há variação linguística, sempre há avaliação social”.
Obras Citadas:
KAVAYA, Martinho. (2002). Educação, Cultura e Cultura do ‘Amém’: Diálogos do Ondjango com Freire em Ganda / Benguela / ANGOLA. Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção. Rio Sul, Brasil: Pelotas.
CYRANKA, Lucia; PINTO, Consuelo. (2010). Aportes Sociolinguísticos à Prática do Professor – Implicações na Sala de Aula (Vol. XIV). UFJF. Brasil.
MCCLEARY, Leland. (2007). Curso de Licenciatura em Letras-Libras. São Paulo, Brasil: USP.
SAYANGO, Avelino. (1997). O Meu Pai (Vol. 1). Luanda, Angola: Barquinho – Livraria Evangélica.
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