Da casa de um primo seu fazendeiro no
Dombe-Grande, o meu pai voltara com arranhões e o bolso da camisa rasgado. A saudade
fora tão grande que, à chegada, partiu para um efusivo abraço, gesto que o cão de
guarda tomou por agressão ao seu amo, acostumado à regra de se sentar primeiro e
saudar depois. Assim é com os Va Cisanji.
Num universo marcado pela exiguidade
bibliográfica na recolha da tradição oral, os rígidos preceitos científicos não
são propriamente a nossa tenção. Não abdicamos é de contribuir com vivências,
ainda que o façamos com a regularidade de um vaga-lume.
Tornando à cena do visitante agredido. Passa-se
que tanto este como o anfitrião são de uma localidade culturalmente fronteiriça
entre os municípios de Balombo e Bocoio, encaixada administrativamente no
último. Dista cerca de 170 Km a nordeste da capital da província de
Benguela, território com predominância da etnia Ovimbundu e que se comunica na
língua Umbundu, representando 1/3 da população — estatísticas
avulsas —
e abrange as províncias do Kwanza-Sul, Benguela e Namibe (costa), Bié, Huambo e
Huila (planalto centro e sul).
Segundo Fernandes & Ntondo (2002), referidos
em Kavaya[1]
(2006: 54), formam o grupo os va Viye, Mbalundu, Sele, Sumbi, Mbwei,
Vatchisandji, Lumbu, Vandombe, Vahanya, Vanganda, Vatchiyaka, Wambu, Sambu,
Kakonda, Tchicuma, o maior etnolinguístico angolano (acima de 4.500.000
pessoas). Quanto à etimologia, Arjago[2]
(2002: 23) sugere que foram apelidados, “pelos povos encontrados, de vakwambundu, o que significa gente vinda
das zonas de nevoeiro, tratando-se do litoral”.
Nestes subgrupos, cada encontro, por simples
que seja, representa provavelmente uma oportunidade de inventariar a vida, sem preocupações
relativas à economia do tempo. «Okwimbwisa
ulonga», fazer a saudação, é um longo relato da situação familiar e
introduzir o motivo do encontro, desde o último contacto, cobrindo depois o social,
o económico e o político. A linguagem é coloquial e inevitavelmente proverbial.
Como veremos adiante, entre os Va Cisanji, a «ulonga» é ainda mais minuciosa. Podemos concluir esta fase
generalista com a certeza de que é ao bem-estar que se aponta.
Do Bocoio, a
minúcia da «ulonga» é norma nas demais quatro comunas:
Monte-Belo, originalmente Utwe Wombwa (cabeça de cão), Chila (de Ocila,
palco, pista), Cubal-do-Lumbo (de Kuvale Kwelumbu, Cubal Mágico) e Passe
(Epasi). O chefe do lar é o interlocutor exclusivo. Nos meios mais conservadores,
acomoda-se o hóspede sem diálogo quase nenhum, enquanto alguém vai buscar o
interlocutor. Na impossibilidade, é substituído pela esposa e, na ausência
desta, pelo descendente mais-velho. É sempre o mais-novo (inferior hierárquico por
idade, grau de parentesco, cargo) quem começa a contar o estado de saúde, sendo
facultativa a pergunta. Se o mais-velho começa a explicar, é sinal para o inferior
distraído o interromper.
Eis algumas passagens
de diversas «ulonga». (a) Dialéctica: “Etu
vo, mumosi haimo. Tulinga tuti vamwe vatokota, vamwe vapola. Apa mbi omãlã omo
vakulila, etu twakulu omo tukukila” (Connosco é igual. Uns quentes/doentes,
outros frios/com saúde. Se calhar é o jeito de nós, os mais velhos, envelhecermos
e os mais novos crescerem); (b) Fome: “Twalale,
omo mwenle apa omo… Etaili, okulikwata komenlã, oco okusuyako” (A noite passou-se,
enfim… Hoje, levar a mão à boca, só se for para coçá-la); (c) Insegurança: “Wangombe, apamba lilu” (ao jeito do
boi, os chifres em riste); (d) Aflição: “Wambwa,
kwatwim kuliwa” (ao jeito do cão, as orelhas sendo roídas).
Resumindo, «Okwimbwisa ulonga», a saudação a preceito, é uma instituição entre
os Ovimbundu, constituindo na tribo Ocisanji uma afronta ser questionado pelo
mais-novo sobre o estado de saúde, e como tal choque de cultura na interacção até
com povos vizinhos.
Gociante Patissa, Benguela, 11 de
Junho de 2014
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